Vinte e sete de dezembro. Papai Noel entrou apartamento a dentro pela
porta da sala mesmo, esbaforido, pequenos frangalhos de neve a
escorrerem pelos fios da barba, um vago hálito de cebola e vodka de
antes de ontem, a respiração penosa a denunciar a longa caminhada. Fitou
o relógio da sala, a morder indiferentemente os minutos, a lambiscar
pequenas fatias de segundos, como se debicasse ainda os restos de um
lauto banquete natalino. O rosto não combinava com a solenidade; as
marcadas linhas de expressão denunciavam um pobre homem cansado; sendo
assim, quando abriu os lábios, não foi para emitir sua patética risada
que tanto delicia às crianças. As sílabas caíram na serâmica da sala
como xícaras a se espatifarem: "Quer me preparar um café"? Meia hora
depois, sentados na mesa da cozinha,tinha diante de mim um papai Noel
novo, a lamber discretamente a boca, um riso de cristal a minar-lhe por
entre os fios de barba onde já não havia neve.
Extraiu do bolso da camisa um papel meio amarrotado. Percebi logo
tratar-se da minha carta. Compreendi que ele não me daria o presente,
fosse porque não entendera o pedido, escrito em bom e claro português,
fosse porque gestar uma dádiva dessa qualidade leva tempo, não o tempo
dos relógios, gulosos comedores de minutos, mas um tempo outro, feito de
concessões, partilhas, renúncias, palavras que parecem ter se evadido da
prática comum dos dias.
Papai Noel fez uma pequena clareira na mesa, afastando xícaras e
potes de geléia; alisou o papel e mordiscando mais um dos deliciosos
biscoitinhos de goma disse:
"Pedido incomum, o seu. Não o compreendi; Veja o que você me
escreve".
Não me espantou o fato de que papai Noel soubesse ler braille;
limpou as mãos na borda da toalha e apalpou as palavras do meu pedido
com dedos gordos e ágeis.
"Não escrevo em papel cor/de/rosa, papai Noel, nem em folha de carta
cheia de coraçõezinhos; o braille não sairia legível; tampouco
combinaria com a cor do meu pedido, nem com o seu cheiro a tragédias"
Papai Noel apagou um ponto a mais no t de tragédia e aproveitou para
observar que eu deveria ter sido mais objetiva. "São tantas cartas a
ler, e-mails, telefonemas... Isso me obriga a pedir aos meus ajudantes
a irem demarcando em vermelho a essência dos pedidos. É um nunca
acabar de marcas vermelhas para bicicletas, carros, games,
microcomputadores; na América Latina toda, na África, milhares de
pessoas me pedem casas, emprego, planos de saúde..." Prosseguiu após
um longo suspiro:
"Assim, faço uso dessa
cartolina branca, para perfurar um pedido, um pedido só: Que não hajam
mais vitórias no Brasil, nunca mais, nenhuma vitória Papai Noel!" Lá
estava a marca vermelha na palavra vitórias e uma monstruosa ruga na
testa do velho. Abri a boca e recebi na cara a torrente da sua
incompreensão:
"Por acaso você faz parte daquela turma do quanto pior
melhor??? Conheço bem o discurso e a prática dessa gente. Apostam no
fracasso do plano real, costuram em surdina uma prece pela volta da
inflação, armam piquetes para parar a produção... É isso o que você
deseja para o seu país???
Mordi os lábios com força; O riacho do pranto contido pulsava
estranhamente no meu nariz vermelho. "Não era disso que eu falava,
papai Noel". A voz me saíra tão frágil que o relógio da sala pareceu
amainar um pouco sua comilança de tempo. " O Senhor já leu um livro de
José Saramago, chamado "Todos os Nomes"?
Naquele momento a cara de
papai Noel ficou engraçada, a meio caminho entre o riso e a tensão.
"Peguei essse livro para ler na minha jornada. Estou naquela parte em
que ele adormece diante da tumba da mulher amada. Mas a que vem isso
agora?"
"Ontem, quando assistia na tv ao jornal nacional, compreendi que o
senhor não atendera o meu pedido. De novo a cena se repetia, com todas
as letras da tragédia pintadas em vermelho. Uma empregada doméstica que
tinha tido um bebê e o embrulhara em jornal. Descoberta pela irmã,
enterrou a criança, que foi salva por milagre e agora se chama Vitória.
Todos Os Nomes da tragédia desse país, papai Noel, agora se chamam
Vitória; Vitória que nasceu de estupro numa outra Vitória de dez anos;
Vitória que renasceu depoisde uma bala perdida; Vitória que nasceu por
indução, num parto em uma mulher que tinha morrido na explosão de uma
fábrica de fogos. É dessas Vitórias que eu falo, papai Noel. Pequenas
vitórias que carregarão para sempre, na alma, no corpo, a inscrição da
dor, da revolta, da angústia mais funda".
Perdoe-me por não ter sido mais clara".
Minha carta tinha virado uma pequena bola de papel nas mãos
do velhinho.
Num rompante, ele a atirou sobre o relógio e ergueu-se,
agora tomado de uma pressa febril. "Já não é natal, filha. Preciso
cumprir o tempo do descanso. Quanto ao seu pedido..."
Interrompi-o.
Tomei-lhe as mãos e aspirei delas um antigo cheiro de fumo, que me
lembrava o tempo em que meu próprio pai era vivo e erguia cercas imensas
nas fazendas dos latifundiários de Pernambuco. Ele deixou a casa em
silêncio. Apanhei o chumaço de papel e não dei importância ao risso
casquinado do relógio, a mastigar seu banquete de inércia.
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