CANTINHO DA PANDORA.




Date: 27 de Dezembro de 1998.

A cronica das Vitórias

Vinte e sete de dezembro. Papai Noel entrou apartamento a dentro pela porta da sala mesmo, esbaforido, pequenos frangalhos de neve a escorrerem pelos fios da barba, um vago hálito de cebola e vodka de antes de ontem, a respiração penosa a denunciar a longa caminhada. Fitou o relógio da sala, a morder indiferentemente os minutos, a lambiscar pequenas fatias de segundos, como se debicasse ainda os restos de um lauto banquete natalino. O rosto não combinava com a solenidade; as marcadas linhas de expressão denunciavam um pobre homem cansado; sendo assim, quando abriu os lábios, não foi para emitir sua patética risada que tanto delicia às crianças. As sílabas caíram na serâmica da sala como xícaras a se espatifarem: "Quer me preparar um café"? Meia hora depois, sentados na mesa da cozinha,tinha diante de mim um papai Noel novo, a lamber discretamente a boca, um riso de cristal a minar-lhe por entre os fios de barba onde já não havia neve. Extraiu do bolso da camisa um papel meio amarrotado. Percebi logo tratar-se da minha carta. Compreendi que ele não me daria o presente, fosse porque não entendera o pedido, escrito em bom e claro português, fosse porque gestar uma dádiva dessa qualidade leva tempo, não o tempo dos relógios, gulosos comedores de minutos, mas um tempo outro, feito de concessões, partilhas, renúncias, palavras que parecem ter se evadido da prática comum dos dias.
Papai Noel fez uma pequena clareira na mesa, afastando xícaras e potes de geléia; alisou o papel e mordiscando mais um dos deliciosos biscoitinhos de goma disse:
"Pedido incomum, o seu. Não o compreendi; Veja o que você me escreve".
Não me espantou o fato de que papai Noel soubesse ler braille; limpou as mãos na borda da toalha e apalpou as palavras do meu pedido com dedos gordos e ágeis.
"Não escrevo em papel cor/de/rosa, papai Noel, nem em folha de carta cheia de coraçõezinhos; o braille não sairia legível; tampouco combinaria com a cor do meu pedido, nem com o seu cheiro a tragédias"
Papai Noel apagou um ponto a mais no t de tragédia e aproveitou para observar que eu deveria ter sido mais objetiva. "São tantas cartas a ler, e-mails, telefonemas... Isso me obriga a pedir aos meus ajudantes a irem demarcando em vermelho a essência dos pedidos. É um nunca acabar de marcas vermelhas para bicicletas, carros, games, microcomputadores; na América Latina toda, na África, milhares de pessoas me pedem casas, emprego, planos de saúde..." Prosseguiu após um longo suspiro:
"Assim, faço uso dessa cartolina branca, para perfurar um pedido, um pedido só: Que não hajam mais vitórias no Brasil, nunca mais, nenhuma vitória Papai Noel!" Lá estava a marca vermelha na palavra vitórias e uma monstruosa ruga na testa do velho. Abri a boca e recebi na cara a torrente da sua incompreensão:
"Por acaso você faz parte daquela turma do quanto pior melhor??? Conheço bem o discurso e a prática dessa gente. Apostam no fracasso do plano real, costuram em surdina uma prece pela volta da inflação, armam piquetes para parar a produção... É isso o que você deseja para o seu país???
Mordi os lábios com força; O riacho do pranto contido pulsava estranhamente no meu nariz vermelho. "Não era disso que eu falava, papai Noel". A voz me saíra tão frágil que o relógio da sala pareceu amainar um pouco sua comilança de tempo. " O Senhor já leu um livro de José Saramago, chamado "Todos os Nomes"?
Naquele momento a cara de papai Noel ficou engraçada, a meio caminho entre o riso e a tensão. "Peguei essse livro para ler na minha jornada. Estou naquela parte em que ele adormece diante da tumba da mulher amada. Mas a que vem isso agora?"
"Ontem, quando assistia na tv ao jornal nacional, compreendi que o senhor não atendera o meu pedido. De novo a cena se repetia, com todas as letras da tragédia pintadas em vermelho. Uma empregada doméstica que tinha tido um bebê e o embrulhara em jornal. Descoberta pela irmã, enterrou a criança, que foi salva por milagre e agora se chama Vitória. Todos Os Nomes da tragédia desse país, papai Noel, agora se chamam Vitória; Vitória que nasceu de estupro numa outra Vitória de dez anos; Vitória que renasceu depoisde uma bala perdida; Vitória que nasceu por indução, num parto em uma mulher que tinha morrido na explosão de uma fábrica de fogos. É dessas Vitórias que eu falo, papai Noel. Pequenas vitórias que carregarão para sempre, na alma, no corpo, a inscrição da dor, da revolta, da angústia mais funda".
Perdoe-me por não ter sido mais clara".
Minha carta tinha virado uma pequena bola de papel nas mãos do velhinho.
Num rompante, ele a atirou sobre o relógio e ergueu-se, agora tomado de uma pressa febril. "Já não é natal, filha. Preciso cumprir o tempo do descanso. Quanto ao seu pedido..."
Interrompi-o. Tomei-lhe as mãos e aspirei delas um antigo cheiro de fumo, que me lembrava o tempo em que meu próprio pai era vivo e erguia cercas imensas nas fazendas dos latifundiários de Pernambuco. Ele deixou a casa em silêncio. Apanhei o chumaço de papel e não dei importância ao risso casquinado do relógio, a mastigar seu banquete de inércia.

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Para contato: Joana Belarmino

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