CANTINHO DA PANDORA.




A geografia da Miséria na Narrativa Oral de

Maria do Carmo Nascimento

De nascimento humilde, nascimento feito na dureza da pedra e da enxada, maria do Carmo é uma senhora de 65 anos, pouco mais de um metro e quarenta, uma reporter nata das acontecências miúdas da gente que vive perto dela, lá na periferia da cidade, lá onde as pequenas ruelas são espaços naturais para tiros, beijos, socos e pedradas. Maria do Carmo vem me visitar vez em quando, arcada sob o peso das esmolas que recolhe pelo caminho, arcada sob o peso das histórias que me conta, entre risos e lágrimas, "verdade verdadeira minha fia, eu juro na cruz de deus!" A gente se senta, toma um café bem forte (Carminha sempre estala a língua depois do primeiro gole) e ela vai tirando do alforge de acontecimentos as notícias que ainda não deram na tevê. Eu incentivo com perguntas:
-- E a garota do estupro? Aquela de doze anos que engravidou e quase morreu depois?
As palavras de Carminha são como uma cascata fina e roufenha: "A criança é a coisa mais linda. Com dez meses já. A mãe faz treze anos em março. Tão fraquinha, se finando, se finando. Ela senta numa cadeira e chama a menina. Uma bolinha que já se arrasta, quase anda; e sai de perto da mãe e vai brincar no terraço, o cabelinho lisinho, sem dar uma volta, avoando no vento. Eu acho que a mãe não vai aturar. Eu acho que ela não escapa dessa.
E conta do rapaz que chegou ontem de Serra de Raiz, a cata de emprego.
-- Serra de Raiz, lá pas banda de Araçagi, depois de Guarabira, lá pas banda de nova Cruz!
Geografia igualitária essa de Carminha, que une Paraíba e Rio Grande do Norte, sapiência de muito traquejo, que em todo lugar a miséria é a mesma.
-- Pode acreditar minha fia. Um litro de água. Um litro de água pra lavar duas crianças e depois lavar os calçãozinho dos menino! Seu Zé Paulo também é outro morador da área. -- Um veinho aprumado, fala bem. Ontem ele disse que esse ano a gente inda vive, mas no outro... Vai ter inflação. E se não chover...

E passa para o assunto do doce de jambo. -- Comade Zefinha me deu uma sacola cheinha de jambo. Eu num queria estragar. Ela tinha me dizido como é que se faz o doce! Ficou tão bom! De cortar de faca, que nem doce de goiaba!
Há que se inventar um tempo forte no passado, para o achado gramatical. "dizido". A palavra tem força de lei. Lei de economia em tempo de guerra, em tempo de miséria.

VOLTA AO ÍNICIO DO TEXTO

VOLTA A PÁGINA ANTERIOR





Para contato: Joana Belarmino

PÁGINA PRINCIPAL

Dê-nos sua opinião



Visite-nos sempre...

Reinvente o seu modo de "ver" o mundo a través da leitura...

Envie suas críticas e sugestões...