CANTINHO DA PANDORA.




Quem se Importa com Nauru?

O último a deixar a ilha já completou oitenta e quatro anos. Leva pouco de seu. Somente a roupa do corpo, leve sudário que freme sob o peso do seu coração.A oeste, na casa arejada, ensombrada pelos coqueiros da ilha estão as panelas de ferro onde preparou por tanto tempo o caldo de peixes. Está sua religião, em maços e maços de livros, agora testemunhas mudas dos dias da ilha.
Faz sua partida, primeiro como se estivesse chegando. Já alcançou a parte sul da ilha, branca faixa de coral, fina linha de caminho a estender-se sob seus pés. Escuta o silêncio por baixo do rumor das ondas. Ficou para ver as sete mil almas que partiam, levando suas coisas e uma pavorosa ausência nos rostos.
Houvera barulho grosso, mas não era de festa. Tremenda sinfonia aquela, de deixar a terra, música atonal, soluçando a métrica desigual de um partir sem tréguas.
E ele próprio cruza agora a linha da partida. Geocentria estranha, premindo na terra estacas de angústia, solidão e silêncio, em passos tão lentos como queda de pássaro que morre.
Não leva nada, senão uma frase que retine como velho metal nas paredes do peito: "Nauru expulsou seus homens..." "Nauru expulsou seus homens..."
O mar escuta por um momento. Depois bafeja-lhe o rosto, como se sorrisse. Enigmático rir das coisas minerais que ele tão bem conhece.
A oeste, está a casa que se curva para vê-lo, na sua partida. E se ri como o mar, a velha casa ensombrada pelos coqueiros da ilha. A frase é como uma côdea de pão velho, que nem a saliva consegue romper. "Nauru expulsou seus homens..." E o fosfato, no fundo da terra, ri, um antigo riso de pássaro marinho.
Ele escuta o riso do mar, da casa, a oeste. Escuta o riso casquinado dos pássaros fossilizados e examina sua frase, única propriedade da sua partida.
É como uma moeda, aquela frase, redonda e cintinante ao sol de Nauru. "Nauru expulsou seus homens..."
Revolve-a lentamente, diante dos olhos, e vê, como em criança, quando brincava de cara ou coroa, a outra face da moeda. "Nauru foi destruída por seus homens..."
O mar já não sorri. Exibe-lhe agora o grande rosto mineral tingido pelo sol, onde ele decifra belas rugas de uma tristeza salgada. A casa, a oeste, cerra suas portas. No fundo da terra, os pássaros de fosfato são pontiagudas trincheiras.
Caminha sem pressa. Sente como se lhe invadisse o jeito de ser das coisas minerais que habitam sua ilha desde sempre. A frase já não o inquieta. Larga sua pequena moeda numa quilha de vento, últimas palavras a se esfarelarem na brisa de Nauru.
Está leve agora. Sabe que não deixará a ilha como um velho cruzado em busca de outros mares.Sabe que habitará com os fósseis marinhos um naco de Nauru.

Há silêncio na ilha. O mar espreme pequenas ondas, só para não perder o hábito. Os pássaros fossilizados dormem nas suas crateras a pequena trégua do progresso.

(minha homenagem ao reverendo James Aingimea, morador da ilha de Nauru, pequena faixa de terra escondida na parte ocidental do pacífico, em franco processo de devastação, promovido pela colonização australiana).
13 de outubro de 1996.

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Para contato: Joana Belarmino

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