CANTINHO DA PANDORA.





A CRÔNICA DO ANO NOVO

(2 de janeiro de 1999)

Agora que o Ano Novo chegou e vive sua imparável travessura de reiventar e desmanchar os dias, fico a pensar no ano que se foi, pensando em toda a penca de anos que se foram, os anos do calendário cristão, os anos de calendários outros, anos outros que se passaram sem sequer saber que eram anos, no tempo em que a natureza experimentava seu modo de criar o mundo sem que houvesse marcas de tempo, num tempo em que a imensa cozinha cósmica triturava seus átomos, cavalgadura incomum em que a ausência de ritmo era o próprio ritmo do som da invenção. Fico pensando no quão inadequada é a expressão "ano velho", porque os anos nada mais são do que um exuberante cacho de dias, enfileirados, pendentes à tarde, caindo à noite de maduros. Quando o útimo dia do ano cai, como se fosse um fruto madurinho do alto de um galho, festejado pelos olhos gulosos de um monte de meninos, nem sequer sobra tempo para que se forme a crosta de resina na árvore do tempo, nem se travestem de folhas emurchecidas, as fatias de minutos do novo ano que surge, feito de novo em fruto estufando de vida, à espera de atos que os diferenciem, que os identifiquem num calendário comum, revestido dos anseios e desejos dos homens. Os anos são assim, os atos dos átomos, incidentais ou planejados, visíveis ou invisíveis, a tecer o chão e a cúpula do tempo e do espaço por onde trafegam as coisas; os anos são assim, os atos dos homens, a tecer o chão e a cúpula do espaço e do tempo por onde trafegam seus sonhos.
O que envelhece, pois, não são os anos, safra acontecente de tempo presente, a derrubar sobre o teto do mundo os frutos que os dias são.
Envelhecem os relógios e suas engrenagens; envelhece a mão que acerta com dificuldade o ponteiro dos segundos, mão que deixou de ser concha e se parece agora uma folha delgada a pender para o chão; sobretudo envelhecem os atos dos homens, enclausurados em suas leis, seus regimentos, seus dogmas, como se fossem folhas ressequidas e amarrotadas, velhas roldanas ferrujentas a tocar o seu mundo; com o riso envelhecido no canto da boca, envelhece também a vontade do homem de viver os seus sonhos, que se vão quedando feito cordeiros domesticados no íntimo porão das lembranças.
Caleidoscópicos, os anos nunca serão velhos, na sua eterna criancice de estufar dias como se fossem bolhas de sabão, frutos de tempo, bolas coloridas de soprar; velhos serão os homens, enquanto não aprenderem a pedurar seus sonhos, ao modo de guirlandas, no redemoinho feliz desse eterno presente que eles próprios chamam de anos.

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Para contato: Joana Belarmino

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