CANTINHO DA PANDORA.





Às Portas do Terceiro Milêlio:

A Cultura Tiflológica e os Digitalizadores de Plantão

Por Joana Belarmino

"Pequena mosca,
Com minha mão
Bruta, cortei
Teu jogo vão.
Não serei, mosca,
Um igual teu?
Ou nào és tu
Homem, como eu?
Pois amo a dança,
Canções, bebida,
Até que a mão cega
Me corta a vida."

William Blake, Songs of experience, "The fly"

[A mosca], estrofes 1-3 (1795)

No Brasil eles ainda são muito poucos. Se deixam estar por horas a fio em pequenos cubículos de apartamentos ou em salas condicionadas de bibliotecas. Vibram por dentro, a música de estarem abrindo um caminho entrançado de sílabas, palavras, frases e silêncios. Vibram por fora a continua faina das suas máquinas, a guardarem em pacotes e pacotes de bits o produto dessa faina. A pouco mais de 150 anos eles não teriam sido pensados pela cultura tiflológica, mas por certo portam o mesmo virus da paixão que impulsionou braille a trazer o mundo legível até as pontas dos nossos dedos; por certo carregam a mesma febre de homens e mulheres que escreveram a prego e papel, os primeiros livros em alto relevo, ou engendraram em seus rostos o sorriso de vitória por verem rugir as primeiras impressoras braille. Eles são os digitalizadores de plantão, um tipo psicológico, sociológico, informático, cultural. Personalidades que se instituem e se constituem em zonas de tensão entre profissionalismo e amadorismo, pedreiros de uma nova arquitetura em que o cimento fundamental são as letras, alucinados e amantes de livros e livros que sopesam entre mãos trêmulas, e que ato contínuo, se põem a desbravar, página por página, criando eles próprios a métrica de uma poesia nova cujo único estatuto fundante é a paixão. Uma confraria que se organiza sem as pêias do formalismo; um pequeno grupo que compartilha o delírio, as horas insones, sem pedir nada pelo produto, a não ser o espaço das contas intervox, caec, starmedia. Pudéssemos olhar melhor para eles e veríamos seus traços comuns, seus distintivos. Há os detalhistas, perfecionistas, geralmente amantes da filosofia e da cognição. Esses aferram-se aos livros digitalizados e só os largam depois de haverem passado pentes finos, extra finos, super-finos, micro-finos. Há os divisionistas, subgrupo dos amantes da filosofia, ocupados em distribuir as obras digitalizadas em capítulos, cada uma em pasta específica, todos os livros arrolados depois em lista. Os quantitativos estão sempre voejando como moscas, de uma obra a outra. Querem logo entregar o produto e que seja muito. E vibram e batem nas costas dos divisionistas, contando da última remessa. Para esses não há a penteagem rigorosa, por isso sonham com um tempo em que os scaners serão máquinas precisas, com %100 de acertos em seus reconhecimentos. Das suas máquinas pode sair de tudo. Literatura, história, poesia, receitas. Desovam nos micros dos outros, obras que podem ser primores de digitalização, ao lado de outras crivadas de ~~+%#//, fazendo do texto uma incompreensível babel de sinais (culpa dos softwares, que se há-de-fazer?) Sào uma turba doente de alegria, que sonha com imensas bibliotecas digitais onde se possa achar de tudo para aplacar a sede de leitura. De lábios apertados experimentam pela centésima vez a emoção de acabar um livro. E recomeçam de novo a dança de estarem ali curvados, no dia seguinte, na hora seguinte, e o brilho da paixão é de novo a força de fazer o tecido do mundo em leitura para todos.

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