Date: Sun, 23 DE Maio de 1999
As vezes, no meio da tarde, minha mãe soltava uma de suas frases
históricas, enquanto varria com virulência os ciscos da nossa infância.
As frases não tinham nada de retórica; pequenos queixumes embrulhados
em poucas palavras; O mais importante naquela pequena trouxa de
pronomes, adjetivos e verbos eram os achados da sua língua materna, que
certamente nunca foram arrolados por qualquer dicionário, antiguidades
de uma semântica tão rara quanto a velha porcelana guardada no fundo do
armário, lembrança de uma bisavó caprichosa.
Varria pedaços de pão, farelos de rapadura e dizia: "Eu hoje amanheci
com um farninzim..." A frase ficava reboando no meu espírito como um
velho trovão que a chuva houvesse esquecido a rolar pelo céu,
órfão do seu relâmpago matriz. Farninzim. Sopesava aquela palavra como
se ela fosse um pedaço de bolo de chocolate, uma banana a que eu fosse
tirando a casca devagar, sentindo-lhe o cheiro, conferindo-lhe as
membranas, adivinhando-lhe a semente pouco firme no fundo. Chuva
passageira, infância corredeira. caixotinho que houvesse no cérebro para
guardar coisinhas miúdas, para lá ia o achado semântico, envolto em seu
nicho de pontuações vagarosas, ruído de vassoura varredeira, cheiro de
tarde preguiçenta. Somente hoje descobri a essência do farninzim. Eu
tinha plantado a noite do sábado no centro de uma dose de vodka; vodka,
limão, gelo e a noite foi ficando redonda, sem ser laranja, sendo
esfera, sendo circularidades bailando e embalando as serpentes que
viriam enrroscar-se no meu domingo. De manhã o sol já havia rebentado a
crosta do mundo. Rebentei a tampa do pequeno caixote, farrapos de
sílabas saltando em círculos, sendo já palavras, sendo já frase velha e
íntegra, com todo seu envoltório próprio. "Hoje eu amanheci com um
farninzim..."
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