CANTINHO DA PANDORA.




Date: 23 de outubro de 2000

"Invasores de Corpos".

"Ruído Branco".

"Contato".

Que título eu poderia dar a esse episódio, a esse discurso indignado feito de zumbido?


Foi pela meia noite de ontem que o fato se deu. em princípio pensei que pudessem ser artes de Harry Potter. O que pensar de um mosquito entrando inopinadamente no seu quarto, pela meia noite de um domingo, zumbindo intermitentemente no escuro, a girar sua angústia em torno da cama, do guarda-roupa, a aumentar em frenesi de zumbidos perto do meu micro, do meu scaner, dos meus apetrechos de braille? Assaltaram-me meus medos ancestrais. Pensei na metamorfose de Kafka, girei como o mosquito, num ângulo de 370 graus e me vi sendo a protagonista principal em "a Mosca 1000". Enfiei-me na frágil cobertura dos lençóis e esperei. Depois da primeira meia hora de zumbidos o mosquito enfim decidiu-se por uma estratégia. De um salto achegou-se aos lençóes, bem ali onde o abanhado permitia passagem. E então me picou no ombro, no direito, na ponta da minha verruga de estimação. Mordeu e saiu. E Só então se fez silêncio no quarto, e enfim pude decifrar a mensagem contida naquele zumbido. Transcrevo aqui minha recodificação, ao mesmo tempo fascinada por haver no mundo dos mosquitos, tanta ética, tanta filosofia, ao mesmo tempo intrigada com o senso de humor de um bichinho tão pequeno! "Perdoe-me invadir assim o seu corpo, vigiar sua corrente sanguínea para aí apreender e costurar o essencial de alguma comunicação que possa se estabelecer entre nós. Decidi-me por você porque amanhã de manhã você recebberá uma mensagem em que um tal baiano a chamará de "diabinha". Também, por causa da sua conta da ig, uma porcaria, somente depois de haver falado sobre "prema-pada", idiretamente, é que você receberá, envolta numa nuvem azul, a real concepção da trilha cósmica que liga os mundos, a fogo e a sangue, compondo nessa pasta meio frita, meio cozida, o grande caldo da cultura amorosa que produziu as estrelas e o lixo reciclável que somos nós, os seres vivos. Pois eu imaginei que no mundo de vocês, um grupo de associativistas havia redigido meses atrás, um manifesto proibindo as orgias sexuais. As esplícitas, as virtuais, as imaginadas ou anunciadas em discursos. Qual nada! Então aquilo que a sua amiguinha Debruxa disponibilizou na lista dias atrás não foi mesmo uma crônica orgíaca? Mas não estou aqui para aumentar as camisas de força que sustentam vocês, suas inseguranças, seus medos, suas alegrias e paixões. Não estou aqui se não para alertá-los do sério perigo que aquela menina, e todos vocês, em cadeia estão ameaçados. Pois saiba que no mundo dos mosquitos, ainda que em escala miniaturizada, também se reproduz aquela luta que se desenvolve entre os humanos, em escalas macroscópicas, a luta entre o bem e o mal! Psiu! pare com esses zumbidos! Pare com essas perguntas metafísicas sobre o que é o bem e o que é o mal! Isso agora não importa mais. O certo é que aquela garota, sabe-se lá por quais caminhos, atraiu para o leito da sua libido um mosquito do mal! Claro! Posso ver agora! Os caminhos estão inscritos no banco de dados do seu próprio DNA! Ela não precisou gastar inteligência para atrair aquele velho mosquito à sede do seu desejo! Bastou que reinventasse o primitivo gesto de Eva, envolto naquela torta açucarada! O velho gesto de atrair um trêmulo e inocente Adão para o núcleo da flor dos seus desejos! Pois aquele mosquito apropriou-se daquele virus, aquele que parece-me apareceu num trabalho de escaneamento da encantadora Dulcinha Leão, aquele virus que vocês combateram dos seus micros e que agora jaz nos seus depósitos biológicos de memorização. As consequências são as mais inimagináveis. Vou citar somente algumas, a título de ilustração: Cataclésio pode se materializar em versão permanente de haker, a desterritorializar todos os seus sítios. Norman e Morgana poderão exigir, na igreja, na hora do casamento, em vez do sermão tradicional, um "boi com abóbora"! Maq, por sua vez, poderá esquecer o número da conta dos elogios e em vez disso depositar desaforos para os récem-casados. Silas, poderá por sua vez esquecer a venda dos seus produtos tiflológicos, para dedicar-se a uma pesquisa sobre a desfeminilização das cervejas! Haverá também um contumaz pintor de portas, que dará seu próprio sangue por uma compreensão estética da cegueira. Pura poesia concreta choverá das mãos de uma professora de filosofia, a desovar no rio Pinheiro sua coleção de prata de estimação. E se verá também a tristeza do professor Eduardo Paz, porque Clara Luz, a maga das sete primaveras, perderá o prumo, a tecer na quilha do vento, uma flecha para o tempo de sua sétima lua, desfeita em sol de meio dia para sempre! Não, não pense que sua encantadora Jobis, por ter saído da lista, por ter saído de Jampa,estará isenta do contágio do virus! Sabe aquela estátua de braille que plantaram lá em Macaé? Pois é lá que ela terá que reaprender o braille, esquecido por um processo de desmemorialização. Não sei se haverá tempo para essa tarefa de recuperação de bits biológicos até o vestibular 2001. Mas chega de exemplos! A cadeia de comunicação entre nós é tão tênue! Pudesse eu reproduzir nesse filete de sangue a matriz básica dos seis pontos de braille, por certo lhe escreveria a saga dessa contaminação, por certo lhe diria do príncipe descendo da montanha, a expor na moldura de palha do seu coração retocado, o estatuto do homem e do cidadão! Lhe falaria do perpétuo trabalho do "minero uai", a preparar um cantinho promíscuo para esconder o queijo perdido nos corredores do Benjamin! Lhe diria do reveillon do Caco, lhe falaria... É só ler para ver; é só apontar a bengala legal para o eixo do mundo, é só..." Aqui a mensagem interrompeu-se em garatujas incompreensíveis, borrões de memória inarticulados num discurso coerente. O mosquito se fora, deixando-me uma pinta de sangue no braço, e só. Será que devo beijá-los, ou vou primeiro lavar o braço?

Joana Belarmino.


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