Milton Schinca**
Tradução livre de Elizabet Dias de Sá
Antes de fazer qualquer outra consideração, gostaria de enfatizar que
o meu trabalho de ledor oral do livro falado tornou-se uma das
experiências pessoais mais ricas e positivas que me coube viver, embora
minha existência tenha sido cheia de atividades atraentes e felizes. Por
outro lado, essa é uma profissão que jamais fizera parte de meus planos
e programações dos afazeres possíveis e se introduziu em minha vida
graças ao empenho providencial de um amigo particularmente querido.
PRAZERES OU DÚVIDAS?
Em 1984, quando retornei ao Uruguai, depois de cinco anos de experiência
no México, Enrique Elissalde, com quem há 20 anos compartilhava o culto
comum da poesia, ofereceu-me um trabalho que me pareceu insólito.
Confiante em minha vasta experiência de radialista, pensou que eu poderia
ser últil em um novo serviço que a Fundação Braille do Uruguai pretendia
inaugurar naquela ocasião: a gravação de textos e obras literárias em
cassetes que os usuários levariam para casa em regime de empréstimo
temporário.
Fiquei entusiasmado com o projeto. Pensei nos riquíssimos horizontes a
serem abertos por essa via para quem estivesse impedido de ver. Mas, o
entusiasmo não significava de modo algum que me sentia seguro para
desempenhar de maneira satisfatória semelhante tarefa. Minha experiência
de 30 anos de jornalismo - ainda que intermitente - não se comparava em
nada à ocupação de ledor de textos que abrangem os mais variados
gêneros, mesmo que a voz e a expressão fossem bastante treinadas.
A capacidade de ler em voz alta material tão heterogênio supõe outros
requisitos e habilidades que jamais havia testado.
COMPLETANDO LUIS BRAILLE
Não domino temas tiflológicos. Apenas, tento transmitir as considerações
certamente ingênuas que me ocorreram naqueles primeiros momentos.
Parecia-me que a problemática da cegueira não se limita unicamente à
perda da função visual. Perguntava-me se mais grave, ainda, não seria a
dificuldade ou a impossibilidade de acompanhar bem de perto e em seu
próprio ritmo a multiplicidade de um mundo cada vez mais complexo que
caminha, às vezes, em velocidades vertiginosas. Daí, a importância de
prover à pessoa cegacom todos os instrumentos e os meios possíveis para
povoar sua experiência interior com elementos da realidade que
permitam a ela não se desconectar dos desenvolvimentos em curso no
mundo em que vive.
Pensaba também que para atacar a problemática da cegueira, a partir
desse referencial, seja de modo parcial ou complementar, faltam,
hoje, ferramentas apropriadas e abundantes que estejam ao alcance dos
cegos sem demandar-lhes esforço excessivo.Parecia-me da maior
importância que essa rica abertura em termos da realidade não se
tornasse para os cegos tão limitadora como é, hoje, tão problemática e
fragmentada. Era precisamente nesta linha de aportes complementares que
se inscrevia o novo projeto de gravações de textos que me propunha
Elissalde.
Bendito seja Luis Braille, pensava eu. Mas, benditos também sejam todos
os recursos que idealisamos para abordar o universo dos cegos a partir
das referências mais variadas e numerosas e, dessse modo, enriquecer
suas experiências interiores.
A proposta era, sem dúvida, um desses meios que significavam o
engajamento de sua relação com o mundo. Como não ficar entusiasmado com
tal projeto?
O OFÍCIO DE DESCORTINAR HORIZONTES
Assim, a primeira preocupação foi a de entender cabalmente o que seria
a minha nova profissão. A principal conclusão pode ser formulada em
poucas palavras: essa profissão consiste em abrir mundos. Quem lê para
cegos não pode pensar nem por um momento que sua função seja a de dar
expressão oral às linhas escritas no papel. Deve ler com a consciência
muito alerta para o fato de que do outro lado do gravador existe alguém
para quem o que está ouvindo é uma porta de acesso a uma nova
experiência de vida dificilmente alcançada de outro modo. Ou tal ato se
tornaria simples e superficial. Parece só um matiz ou um detalhe. Mas,
não é assim. Quando lemos com a convicção de que estamos fazendo
liberar horizontes, todos os aspectos da leitura são transfigurados e
iluminam o manejo das inflexões, as cargas de expressividade, as
entonações, as intencionalidades e o colorido do que tentamos
transmitir.
NOSSO INIMIGO, O TÉDIO
Talvez, eu me refira ao que me parece a principal lei da leitura oral
que formularei de maneira simples e pueril: o aborrecimento aborrece.
Em outras palavras, se quem lê o faz de forma tediosa, transmite tédio.
Daí, a importância de que a leitura oral possa interessar genuinamente
ao profissional que deve ler para outros porque Se ele lê maquinalmente,
sem penetrar no conteúdo percebido, será ouvida uma mensagem incolor,
apagada e sem vida. A conseqüência será o tédio. Esta lei inexorável
sempre se cumpre em qualquer tipo de leitura oral. Mas, parece-me ainda
mais rigorosa no caso do ouvinte cego. Isso porque o seu campo de
atenção fica ocupado com mais radicalidade pela mensagem auditiva. Por
isso, será mais fácil para ele detectar o estado de ânimo de quem lê.
Por essa razão, parece-me um princípio natural o de escolher, se
possível, textos atraentes para quem os lerá. Claro que nem sempre
isso será possível. Nessa profissão, será inevitável que caiam em
nossas mãos, ás vezes, textos que nos são completamente alheios.
São como pesadelos profissionais que, às vezes, - diga-se de passagem -
o amigo Elissalde nos infligirá sem nenhuma piedade. Quem poderia
entusiasmar-se lendo páginas e páginas de estatutos ou regulamentos
inteiros com artigos frios, incisos pálidos e parágrafos mumificados?
Nestes casos, para nós, dramáticos, talvez, a salvação consiste em
recorrer a uma segunda lei da leitura oral que funciona como paliativo para os
tormentos deste material desditoso.
SEGUNDA LEI: LER CLARIFICANDO
Poderíamos anunciá-la assim: devemos ler procurando tornar claro a cada
momento o sentido do que está sendo lido. Exagerando um pouco, talvez,
diria que se trata de ler explicando ao outro. Resvalar pelo
significado, passar ao largo dos sentidos e pensar em outra coisa
têm como conseqüencia o obscurecimento da mensagem e a dificuldade
adicional de compreensão. Sem contar que o tédio será mais uma vez a
conseqüência inexorável.
Diria que o primeiro mandamento para quem lê para outro é tornar
plenamente compreensível o que transmite. Isso porque se tratamos de
explicar aquilo que estamos lendo surgirão matizes, acentos e ênfases
que animam a leitura e são capazes de dotar de certa vida até os artigos
de cimento armado de um regulamento ou estatuto.
TERCEIRA LEI: leitura comunicativa
Existe um tipo de leitura pessoal e um tipo de leitura comunicativa. No
primeiro caso, sentimo-nos comprometidos em recitar em voz alta o que
está no papel. No segundo caso, ao contrário, ficamos em busca do outro,
sem descanço, aquele ser humano que ali está atento a tudo que
pronunciamos. Não somos monologuistas. Dialogamos ou quem sabe,
simplesmente conversamos como dois amigos. Nosso dever é, pois, chegar
ao outro, interpelá-lo, comovê-lo, compromotê-lo, fazer com que
participe do que falamos. Ocorre ou deve ocorrer tal como na vida
diária, quando conversamos com alguém. Utilizamos - sem nos dar conta -
de um repertório de recursos de comunicação oral que condiciona e
modifica nossa fala. O ideal seria que quem escuta tenha a sensação de
que estamos falando direta e exclusivamente para ele.
QUARTA LEI: O TEXTO MARCA E COMANDA
Claro que nem sempre é possível converter a leitura em conversa. Existem
textos que não o permitem por sua própria índole. Isso nos leva a lançar
mão de outra lei que também se cumpre inexoravelmente: cada texto requer
um tipo próprio de leitura que o traduza e o expresse da melhor maneira
segundo a sua natureza. Se lêssemos todos os textos do mesmo modo,
seríamos maus ledores.
Quando leio uma novela, procuro converter-me em narrador vivo e
comunicativo da história transmitida. Se leio, porém, um discurso
parlamentar que me coube ler, não me resta outro remédio senão o de me
aproximar pelo menos um pouco do estilo da oratória. Ao ler um poema
de amor, não posso fazê-lo do mesmo modo que leio um estudo sobre
tiflologia. Em cada caso, tenho que simular um pouco o meu estilo de
leitura, pois o resultado seria nefasto se, em todos os casos, o leitor
oral uniformizasse sua expressão.
Aproximar-se dos atores teatrais, representar a leitura apresentada,
Admito que seja exagerado, pois não se trata estritamente de
representar e sim de tornar adequado. Mas, a palavra representar,
talvez, tenha a vantagem de estabelecer o que quero por ter provocado
uma associação de idéias com a atividade teatral e, em particular,
com o trabalho dos atores realizado no palco. Justamente a leitura oral
demanda com freqüencia que atuemos à maneira dos atores. Obriga-nos até
certo ponto a entrarmos na pele de quem escreveu o texto. Entrar na
pele é mister eminentemente teatral e artístico. Se leio um poema de
amor, como já disse, não preciso estar verdadeiramente enamorado para
que a leitura seja convincente. Bastará entrar na pele do enamorado,
sentir como ele, no momento em que está embebido de seu sentimento
amoroso.
Esta não é, contudo, a única forma de atuação exigida. Por exemplo, às
vezes devemos ler uma novela ou um conto relatados na primeira pessoa.
Neste caso, nosso dever é fazer a leitura como se fôssemos o personagem
que narra. Devemos encarná-lo, desempenhar o papel de. Ocorre com
freqüencia em narrações lidas por nós, mesmo na terceira pessoa e
não na primeira, o surgimento de diálogos e de monólogos. Quer dizer, os
personagens falam e, por vezes, falam abundantemente. Existem contos
inteiros de Morozoli, por exemplo, construídos em grandes seqüências de
diálogos. Em todo caso, não temos outro remédio senão o de nos
convertermos momentaneamente em atores, pois faríamos um péssimo favor
ao autor e ao ouvinte se uniformizásssemos as falas de todos os
personagens. O ladino apareceria falando como santo e o velho bêbedo
como a mocinha virginal.
É preciso que marquemos ao menos certas diferenças básicas de falas
nestes casos. Isso implica em certos riscos que não nos escapam e que
chegamos a discutir nos primeiros tempos do livro falado. O que seria
preferível, uma leitura branca ou uma leitura até certo ponto
expressiva? No último caso, não estaríamos condicionando o leitor à
interpretação do texto que lhe chega? Não o estaríamos induzindo a
ver e sentir segundo a nossa interpretação que poderia não ser a
dele? Quem faz leitura oral pode induzir, mesmo sem o pretender, a
um certo entendimento do texto, cuja interpretação será a sua e pode não
coincidir com a de quem o excuta. Assim, o ledor oral converte-se em
intermediário - ou se preferirmos - em um intruso que se interpõe entre
o texto do autor e a recepção do ouvinte. Seria então preferível a
leitura branca e inexpressiva como se frases desfilassem impavidamente,
umas atrás das outras, para que o ouvinte pudesse carregá-las de
sentido por sua conta e ao seu modo? A solução mais aceitável como
ocorre tantas vezes parece ser o meio termo: nem a leitura branca que
logo se torna tediosa e, talvez, não seja tolerada por muito tempo,
nem uma leitura demasiado comprometida em sua expressão para induzir
o ouvinte a aceitar o que seria o entendimento subjetivo de quem lê.
Contentamo-nos, pois, em marcar minimamente os matizes que fazem falta à
melhor percepção do texto, tomando cuidados para não carregá-lo com tal
ou qual intencionalidade passível de diferentes interpretações.
CONFINADOS COMO PRISIONEIROS
Embora o ledor oral esteja especialmente preocupado em comunicar-se e
dirigir-se a um ouvinte concreto, sua relação direta com quem o escuta
é desgraçadamente mais do que limitada. Seu trabalho deve ser realizado
entre quatro paredes estreitas, isolado do mundo exterior, em uma
penumbra quebrada apenas pela luz do portátil sobre o texto. Ali passa
as horas envolvido na aventura de ler, vivendo-a quase como um ermitão.
Raramente, terá contato com os usuários e poucos são os que chegam a
saber da real ressonância de seu trabalho. A quais expectativas dos
usuários temos correspondido? Que demandas não foram satisfeitas? Somos
aceitos, bem tolerados? Ou apenas nos suportam? Emocionam-se ou ficam
frios com a nossa leitura? Somos claros? Ou não propiciamos nenhum
entendimento útil do texto? Consideram-nos intrusos nesta intermediação
entre o usuário e o autor? Mil perguntas, mil incertezas que jamais
poderemos esclarecer completamente.
AS JANELAS E A PONTE
Às vezes, penso que o nosso trabalho de ledores orais deveria ser como
o vitral de uma janela através do qual o ouvinte visse sem ver-nos. Que
lhe chegasse somente o autor e o texto e não a nossa leitura.
Igualmente, ao passarmos por uma ponte, olhamos a paisagem sem
prestarmos atenção à ponte. Nós, leitores profissionais, também
deveríamos ser assim, apenas ponte que permita ao passante passar por
ali atento ao panorama e não à estrutura sobre a qual vai avançando. De
qualquer forma, ser ponte ou vitral de uma janela, não é belíssima a
nossa profissão? Permitir ver mais longe, conduzir a outros mundos quem
desejar. Como não me sentir gratificado com esta venturosa tarefa que
um dia Enrique Elissalde teve a inspiração de contemplar-me e que,
hoje, constitui parte iluminada de minha existência?
*texto extraído da publicação especial "para los 15 anos de la
Fundacion Braille del Uruguay", 13 de junho de 1993 Montivideo
** Milton Schinca é jornalista e trabalha na unidade do livro falado da
Fundação Braille do Uruguai.
Nota da tradutora: a tradução brasileira foi publicada na revista INSIGHT Psicoterapia, março/94 Editora Oasis São Paulo