Afonso Romano de Sant'Anna
A CEGUEIRA E O SABER (1)
Primeiro esta lenda: "Era uma vez uma praga que atingiu os mongóis.
Os saudáveis fugiram, deixando os doentes e dizendo: 'Que o Destino
decida se eles vivem ou morrem'. Entre os doentes havia um jovem
chamado Tarvaa. O seu espírito deixou o corpo e chegou ao lugar dos
mortos. O governante daquele lugar disse a Tarvaa: 'Por que
deixaste o teu corpo enquanto ainda estava vivo?'. 'Eu não esperei
que tu me chamasses', respondeu Tarvaa, 'simplesmente vim'.
Comovido com a presteza com que o jovem obedeceu, o Khan do Inferno
disse: 'A tua hora ainda não chegou. Deves retornar. Mas podes
levar daqui o que quiseres'. Tarvaa olhou em volta e viu todas as
alegrias e todos os talentos terrenos: riqueza, felicidade, riso,
sorte, música, dança. 'Dá-me a arte de contar histórias', disse
ele, pois sabia que as histórias podem congregar as outras
alegrias. E assim retornou ao seu corpo e constatou que os corvos
já lhe haviam arrancado os olhos. Como não podia desobedecer ao Khan
do Inferno, reentrou no próprio corpo e viveu cego, porém
conhecendo todos os contos. Passou o resto da vida viajando pela
Mongólia, contando contos e lendas e trazendo às pessoas alegria e
saber".
Sintomaticamente essa lenda começa mencionando "uma praga que
atingiu os mongóis" e termina revelando como o herói se tornou
exemplar contador de histórias. A exemplo de "O Decamerão", de
Bocaccio, várias narrativas se referem às pestes que antecederam o
surgimento dos contadores de história. No caso da narrativa
italiana, um grupo de jovens se refugia num determinado lugar por
causa da peste e para passar o tempo eles começam a contar
histórias. Narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte.
Igualmente em "As mil e uma noites", as peripécias que Sherazade
vai desfiando noite após noite é o seu estratagema para postergar a
sua morte.
No caso da lenda mongol, além da peste como elemento disparador dos
fatos, há um dado singular: como todo personagem mítico, o herói
Tarvaa transita entre a vida e a morte, como se não houvesse
separação entre elas. É o herói mágico que vive no limiar, na
fronteira entre dois mundos. Adentrou-se na morte, mas estava vivo.
Não esperou que o chamassem para o outro lado - "simplesmente vim",
diz ele, como se isso lhe fosse natural. E como uma espécie de
prêmio ou reconhecimento lhe é conferido o direito de escolher o
que quiser do mundo sobrenatural. Mas à semelhança de outros heróis
míticos, ele recusa as riquezas e opta por algo bem mais modesto,
algo que aparentemente é nada: contar histórias.
Em dois outros extremos, um religioso e outro literário, poderíamos
estabelecer um paralelo, com Cristo recusando tudo, toda a
aparência de poder e brilho que o demônio lhe ofereceu do pináculo
do templo ou, no episódio poético e metafísico da "Máquina do
mundo" que apareceu ao poeta (Drummond) oferecendo-lhe também a
solução de todos os enigmas. Nesses episódios, igualmente, há a
recusa das aparências, do falso poder e do falso saber. E assim
como na mítica biografia do Rei Salomão, que ao ser indagado, ainda
jovem, o que mais queria, respondeu "sabedoria", o herói mongol
optou também por um tipo de saber & poder imponderável : viver no
fabuloso imaginário.
Mas nosso herói, como nos mitos, por ter se apressado, como se
tivesse cometido uma infração, é também punido. Enquanto dialogava
com o Khan do Inferno, do lado de cá onde havia largado seu corpo,
os corvos comeram-lhe os olhos. Mesmo assim ele reassume sua forma
e seu papel no drama, pois sendo cego ele conhecia já "todos os
contos" e levava às pessoas "alegria e saber". Ele não necessitava
mais ver o exterior, a sabedoria iluminava sua vida interior.
A cegueira e o conhecimento são dois termos que pontuam inúmeros
mitos. Ao invés de se anularem, esses dois termos se potencializam.
Édipo, por exemplo, na tragédia de Sófocles, nos dá dois elementos
importantes para esta análise. Primeiro a peça se inicia
descrevendo, a exemplo do mito mongol, o misterioso flagelo, "a
pavorosa peste" que se abateu sobre a cidade. Em segundo lugar , um
dos pontos altos da tragédia é quando ao "ver" que possuiu a
própria mãe depois de ter matado o pai, Édipo cega-se
assombrosamente. Dir-se-ia que cegou-se para não ver. Mas numa
interpretação ultra-sofisticada de Heidegger, Édipo é aquele que se
cegou para melhor ver a sua patética situação.
Cegueira e (pré)visão. Do Cego Aderaldo repentista no sertão
nordestino à Grécia esses termos se complementam. "Furaram os óio
do assum preto prá ele assim cantar melhor", diz Luiz Gonzaga.
Homero, diz-se, era um bardo cego. E é comum aqui e ali encontrar o
profeta, o sacerdote, o xamã ou o pajé, sempre cegos, que de dentro
de sua cegueira enxergam melhor que a corte ou toda a tribo. É
assim que Tirésias, o adivinho que aparece em várias peças de
Sófocles, sendo cego é o que pode narrar e pre-ver. É ele quem
revela a Édipo o que, antes de cegar-se, Édipo ignorava.
Tome-se agora esse extraordinário livro "Meu nome é vermelho"
(Companhia das Letras) do escritor turco Orhan Pamuk. A cegueira e
a sabedoria são dois temas fortes dessa obra, que estabelece o
confronto entre a maneira renascentista de pintar e o modo de
conceber figuras e miniaturas nos impérios persa, mongol e turco.
Aí, como se estivessem revivendo mitos, os pintores cultivavam a
cegueira como forma de aperfeiçoar sua pintura. Assim, "a cegueira
não era um mal, mas a graça suprema concedida por Alá ao pintor que
dedicara a vida inteira a celebrá-lo; porque pintar era a maneira
de o miniaturista buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem
igual só pode ser alcançada por meio da memória, depois que o véu
da cegueira cair sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de
trabalho duro. Assim, a maneira como Alá vê o seu mundo só se
manifesta por meio da memória dos velhos pintores cegos".
Por isto no Islã antigo pintores apressavam sua cegueira pintando
sobre uma unha ou grão de arroz, ou fingiam-se de cegos, pois só os
sem talento precisavam dos olhos.
Talvez, por aí, se possa começar a entender a opção que faz o
artista entre o mundo imaginário, para ele mais real que o real, e
o que os demais denominam como realidade.
É preciso depois de ver, desver para que o real se realize.
A CEGUEIRA E O SABER (2)
Do "Ensaio sobre a cegueira", romance de José Saramago, o leitor tem memória
recente. Ele narra que num dia qualquer um cidadão diante do sinal de
trânsito fica
desesperadamente cego. E começa, então, uma epidemia de cegueira narrada
longamente. Ao final do livro e do mergulho na escuridão os personagens
começam a
emergir de novo para a visão recuperada. É uma parábola de fundo ético,
sobre os
nossos tempos, com laivos de esperança, como o próprio romancista assinalou
em
algumas entrevistas. Na última página, usando aquela estranha pontuação o
texto
indaga: "Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a
conhecer a
razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que
estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".
Na mitologia e na literatura há vários textos sobre o intrigante tópico da
cegueira e do
(não) saber. Ainda agora recebo "Manual de instruções para
cegos"(7Letras/Funalfa),
de Marcus Vinícius, um bem-elaborado livro de poemas que atravessa essa
questão. E
a contadora de estórias Christina Zembra me lembra o recente "Vozes do
deserto"
(Record), de Nélida Piñon, em que a escrava Jasmine vai ao mercado de Bagdá
ouvir
histórias do derviche cego, que, à maneira daquele herói mongol Tavaar, ao
ficar cego
pediu a Alá que lhe desse algum dom que o fizesse sobreviver.
No entanto, um dos mais fortes e intrigantes textos sobre o tema que estamos
abordando é o conto de H.G. Wells, escrito em 1899, "Em terra de cego", que
pode ser
encontrado em "Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo
Calvino" (Cia das Letras). Curiosamente, lembro-me de um jantar aqui
no Rio em que, indagado por Marina Colasanti, Saramago revelou que
não conhecia o texto de Wells. Todavia, um estudo comparativo entre
ambos seria enriquecedor.
H.G. Wells (1866-1946) conta que, nos Andes, na região do Peru,
havia uma Terra de Cegos. Como em outras narrativas, a exemplo do
mito mongol e o "Édipo" de Sófocles, aos quais já me referi, a
cegueira sobreveio como uma peste, como punição para os "pecados da
comunidade". Surgindo aos poucos, a cegueira foi se manifestando nos
habitantes daquela região até que, ao cabo de 14 gerações, estavam
todos sem visão e não tinham mais sequer memória que um dia algum
antepassado pudesse ter visto alguma coisa. Porém, adestrados para
sobreviverem, acabaram por se movimentar normalmente nas montanhas,
cultivavam seus alimentos e se reproduziam. Como em muitos mitos,
no entanto, um dia surge um forasteiro. Ah! O forasteiro, esse que
vem de fora, vendo o que a comunidade já não mais vê? Pois esse
forasteiro literalmente despencou ali na Terra de Cegos ao cair de
uns trezentos metros numa encosta gelada. Recuperando-se do
acidente, estava pasmo, admirando a espetacular natureza e o
milagre de sua sobrevivência, quando percebeu estranhas pessoas que,
aos poucos, descobriu, eram cegas. Vem-lhe à mente a expressão: "Em
terra de cego quem tem um olho é rei". E o que se desenrola a
seguir é, em parte, para provar (ou não) os limites dessa
assertiva.
O forasteiro é levado ao ancião da tribo. Estabelece-se o confronto
cultural-biológico. Eles não entendiam o que ele queria dizer
quando usava a estranha palavra "ver". Decididamente possuía uma
anomalia - a visão - que tinha que ser curada. Estranhavam que ao
guiá-lo pelos caminhos ele afirmasse que não se preocupassem porque
podia ver com os próprios olhos. "- Não existe a palavra 'ver' -
disse o cego. - Pare com essa loucura e siga o som de meus pés".
Mas o forasteiro retruca ao cego: "Nunca lhe disseram que em terra
de cego quem tem um olho é rei?". E o outro responde: "- O que é
cego?"
Faltava-lhes a visão e a palavra correspondente. Mas,
espantosamente, os cegos tinham lá sua sabedoria, sua filosofia,
sua religião. E o fato é que o estranho, o "outsider", tentou se
adaptar, esforçou-se por "ver" junto com os cegos, alongando os
sentidos para que um compensasse e ampliasse o outro. Diante das
dificuldades de adaptação à cegueira, dizia "Há coisas em mim que
vocês não entendem" e passava a descrever a beleza do mundo que
conhecia, porém os cegos negavam aquilo tudo. Há até uma cena de
ameaça de luta usando pás entre aquele que vê e os que não sabem
que não vêem. A partir daí, o estrangeiro "começou a perceber que
não se pode nem lutar com ânimo contra criaturas que estão numa
situação mental diferente da sua".
Há uma primeira tentativa de fuga, de abandono daquela situação. Mas
o herói volta para dar a si e aos cegos nova chance. Decide
tornar-se um deles. Aceitar a cegueira para sobreviver. Começa a
namorar uma bela índia. Mas os nativos se preocupam que ele vá, com
sua visão, corromper a raça. Dizem-lhe que tem que ser operado. E o
ancião lhe afiança que a cirurgia é "bem fácil" e pode extrair-lhe
"esses corpos irritantes" - os olhos.
Na véspera de abrir mão de sua visão, foi ao local de sacrifício
para despedir-se da pradaria, dos narcisos brancos, "mas enquanto
andava ergueu os olhos e viu a manhã, manhã como um anjo em
armadura dourada, descendo pelos picos? Pareceu-lhe que, diante
desse esplendor, ele, e esse mundo cego no vale, e seu amor, e tudo,
não eram mais do que um poço de pecado (?) Viu sua beleza infinita,
e sua imaginação cresceu a partir do gelo e da neve para as coisas
lá longe, às quais iria renunciar para sempre". E depois de
descrever a riqueza do mundo fora da Terra dos Cegos, o texto
descreve o estado de graça do personagem: "ficou bastante quieto
por ali , sorrindo como se estivesse satisfeito simplesmente por
ter fugido do vale dos cegos, no qual tinha pensado ser rei. O
brilho do pôr-do-sol passou, a noite chegou, e ele ainda estava
quieto, deitado, em paz e contente sob as estrelas frias e claras".
Afonso Romano de Santa'Anna
A CEGUEIRA E O SABER (3)
Aconhecida lenda de Hans Christian Andersen "A nova roupa do
imperador" é uma variante do tópico que estamos estudando. Aqui não
se trata da cegueira biológica, senão da incapacidade de ver e do
medo de enfrentar o real. O conto de quatro páginas e meia tem tal
força simbólica que incorporou-se ao inconsciente coletivo da
modernidade. Por isto, essa história é dada como pertencente a
vários folclores, como o português, onde o menino que denuncia a
nudez do rei é substituído por um estranho-estrangeiro-negro. Seja
como for, quando as pessoas dizem "o rei está nu" estão denunciando
o embuste em várias situações. Em relação à arte de nosso tempo
essa metáfora é a mais usual. Não há estudo sobre a arte atual que
não recorra a essa lenda. Por quê? Seria assunto para uma
instrutiva pesquisa.
Diz a história de Andersen (1805-1875) que houve um imperador que
gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo
experimentando-as do que cuidando das outras coisas do reino. (Já
na abertura aparece este tópico curioso, que podemos batizar de
neofilia: a paixão pela coisa nova, pela moda, pelo aspecto
superficial, exterior, que fazia com que o imperador se
desinteressasse da realidade de seu reino). Isto propiciou que dois
espertalhões surgissem em suas terras dizendo que produziam uma
roupa que não apenas tinha cores deslumbrantes, mas que possuía uma
qualidade única: só pessoas muito especiais poderiam vê-la e que
apenas pessoas destituídas de inteligência, que não estavam aptas
para ocupar cargos no reino, iam dizer que a roupa era invisível ou
que não existia.
Assim, estabeleceu-se um processo de seleção, quase um rito de
iniciação pelo qual o imperador poderia testar a inteligência de
seus auxiliares, pois só os escolhidos eram capazes de ver a roupa
invisível que ninguém via. Os falsos tecelões simulavam tecer panos
no tear e iam exigindo dinheiro e fios de ouro em troca. E como o
monarca quisesse já testar a inteligência de seus auxiliares, pediu
ao velho ministro que fosse ver como andavam as coisas. Lá
chegando, o principal auxiliar do imperador ficou perplexo, porque
os teares estavam vazios. "Não consigo ver nada!". Mas, temeroso de
expressar seu sentimento, começou a ouvir a descrição que os falsos
costureiros faziam do tecido maravilhoso. E ele se dizia: "Será que
sou tão estúpido? Não vejo nada! Vai ver que sou inapto para o
cargo que ocupo". E como temesse perder o cargo e os tecelões do
nada cobrassem dele a visão que eles tinham, acabou declarando: "É
maravilhoso! Que padrões! Que cores! Vou dizer ao imperador que
fiquei encantado".
Além da trapaça financeira, observe-se que a palavra ocupa o lugar
da coisa, o conceito no lugar da obra. Não só o imperador
acreditou, desde o princípio, na palavra dos arrivistas, como
também o ministro, por medo e insegurança, abriu mão da sua palavra
(ou visão) em benefício da palavra (ou visão) dos ilusionistas. E a
cena se repete quando o imperador, para testar outro conselheiro,
pede que ele faça a visita ao ateliê do nada. A reação foi a mesma.
Ele não via nada. Pensou em dizer que não estava vendo nada, mas
receoso de passar por estúpido e perder o emprego, partiu para os
elogios a inventar verbalmente o inexistente tecido.
E o mesmo vai ocorrer com o imperador quando decide ir ver a tal
roupa fabulosa. Ao defrontar-se com coisa nenhuma, pensou igual ao
velho ministro e ao conselheiro - "Estão me fazendo de idiota!" -
mas para não passar publicamente por imbecil, já que dois de seus
principais auxiliares viam no vazio coisas fascinantes, passou a
exclamar "lindo, maravilhoso, excelente". Assim fechou-se o
circuito de invenção verbal da coisa inexistente. Ao qual se
incorporou o resto da corte quando auxiliares tiveram que fingir
carregar o manto invisível no dia de sua exibição no palácio. A
ousadia dos falsários leva o imperador admirar-se diante do
espelho. Então, consuma-se a alucinação: "o imperador diante do
espelho admirava a roupa que não via".
Assim, toda a corte passou a se curvar diante do inexistente com a
anuência do imperador e seus auxiliares. "Nenhum deles queria
admitir que não estava vendo nada, pois se alguém o fizesse estaria
admitindo que era estúpido ou incompetente. Nunca uma roupa do
imperador fez tanto sucesso".
E como termina a história?
No folclore português, ao invés de auxiliares competentes da versão
de Andersen, só os "filhos legítimos" poderiam ver a roupa
invisível do rei. Seria, como em outros mitos, a senha da
legitimidade para sucessão no trono. Desta feita quem denuncia o
embuste é um estranho-estrangeiro-negro. Na lenda de Andersen é uma
criança - essa espécie de olhar estranho e virgem - que,
descompromissada, grita em meio à multidão: "Ele está sem roupa!".
O povo começa a abrir os olhos e concordar com a visão do garoto.
Enquanto a multidão gritava, o imperador acuado pensava: "Tenho que
levar isto até o fim do desfile. E continuou a andar orgulhoso e,
com ele, dois cavaleiros e o camareiro real seguiram e entraram
numa carruagem que também não existia".
É um belo final irônico, em aberto.
Noutras versões menos instigantes, que até circulam na internet, o
rei ficou envergonhado de ter se deixado levar pela vaidade,
arrependeu-se e desculpou-se, enquanto os falsos tecelões foram
enganar outros em outros reinos, até serem presos e condenados.
Essa é uma lenda sobre um pacto de não-ver, onde toda uma comunidade
brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada.
E porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos
deixam de ver (e ter opinião). É um caso de cegueira social. Isto
ocorre, visivelmente, nas agremiações políticas e religiosas: a
produção de um discurso que ordena o que deve ser visto ou não. No
caso de grande parte da arte contemporânea isto é um caso de
voluntária cegueira artística, próximo do que La Boetie chamava
"servidão voluntária".
Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de
descrever as sutilezas da inexistente veste real, o rei está ou não
está nu? Está e não está. Como diria Nathalie Heinich, "o rei está
vestido pelo olho do outro". A linguagem pode ocultar ou desvelar.
E esse é um jogo difícil e perigoso de se jogar.
Antes de virar marca de chocolate, Lady Godiva era uma lenda que
ilustra uma das variantes do tema que estamos tratando. Aí
ressurgem as questões do ver e do não- ver, porém envoltas com o
problema da transgressão e da punição. Diz a lenda que entre os
anos 968-1057, na Inglaterra, na região de Coventry, havia um rei,
Leofric III, que cobrava pesados impostos de seu povo. Sua mulher,
Lady Godiva, implorava ao marido que fosse mais humano com seus
súditos. Ele não cedia. E um dia, como ela tornasse a insistir, ele
fez uma contraproposta, evidentemente, para humilhá-la e mostrar
uma vez mais seu poder sobre o povo. Que ela desfilasse nua sobre um
cavalo pela cidade e ele aboliria os impostos excessivos.
Pois a Lady aceitou o desafio. O marido, aparentemente liberal, era,
no entanto, ciumento, e botou uma condição: ninguém poderia vê-la
desfilar nua, todas as portas e janelas deveriam estar trancadas.
Pode-se imaginar como essa nudez se tornava logo mais erotizada não
só pela presença desse cavalo em pêlo onde ela ia peladíssima,
"vestida" apenas de sua longa cabeleira, mas a interdição tornava a
cena ainda mais erótica. E no dia ansiado, lá estava Lady Godiva
sobre o cavalo ondeando suas formas, oferecendo sua nudez real e
imaginária, posto que ninguém deveria ou poderia vê-la. Mas como em
toda lenda, há um transgressor; e um certo Peeping Tom resolveu
fazer um buraco na janela de sua casa para ver a nudez real passar.
Dizem que é daí que veio a expressão "peeping tom" em inglês,
significando o voyeurista, o que sente prazer sexual em ver as
intimidades alheias.
O fato é que o cidadão curioso foi punido com a cegueira. Ele viu o
que não deveria ver. Nem sempre a autoridade permite que se veja o
que ela não quer que seja visto. Se alguém insiste em ver o
interditado deve ser cegado, para que a autoridade e o sistema
permaneçam. É interessante, no entanto, observar duas coisas.
Primeiro que, apesar deste incidente, o rei aboliu os impostos. E,
em segundo lugar, um detalhe que não pode passar em branco na
seqüência de histórias que estamos analisando: o voyeurista, aquele
que quis ver a nudez da Lady Godiva era um alfaiate. Não deve ter
sido por acaso que a lenda se constituiu deste modo incluindo aí um
alfaiate, da mesma maneira que não é à toa que naquela lenda de
Andersen que citei noutra crônica os dois tecelões( variantes do
alfaiate) tecem a roupa inexistente para o rei.
Ao contrário da lenda de Andersen e de seus tecelões charlatães,
aqui o alfaiate, que sabia cobrir o corpo alheio com as roupas mais
apropriadas, é aquele que ousa ver a anti-roupa, ou melhor, a roupa
original, a Lady vestida pelo esplendor de sua nudez. Portanto,
aquele que por profissão cobre a nudez do corpo é o mais curioso
para ver a Lady Godiva nua, desvestida.
Essa lenda tem sua parte de verdade, pois esses personagens são
reais, há a sepultura da Lady na Trinity Church, e desde 1678
realiza-se um desfile lembrando o episódio. Uma lenda sobrevive na
medida em que expressa conteúdos do imaginário coletivo.
Freud interessou-se por essa história ao estudar o "Conceito
psicanalítico das perturbações psicogênicas da visão" (1910). Ele
estava interessado em analisar a cegueira histérica estudada por
Charcot, Janet e Binet. Nos hospitais e clínicas constatara que a
histeria provocava a cegueira. Em circunstâncias de estresse e
trauma, uma pessoa pode fabricar, psicologicamente, sua própria
cegueira. O que faz com que em algumas sessões religiosas alguns
desses histéricos voltem até a enxergar de novo, destraumatizados
pela fé. Mas há também os casos da cegueira provocada
psicologicamente por outra pessoa, quando um hipnotizador, por
exemplo, torna um cliente sonâmbulo ou faz que veja, como reais,
alucinações puras surgidas do comando do hipnotizador.
Líderes carismáticos podem provocar a cegueira histérica numa
comunidade e levar todo um país a horrores sem precedentes. É o
caso de hipnose social e histórica. Histórica e histérica. Hitler,
Stalin, Mao são alguns exemplos recentes. E a cegueira em que anda
tanto o povo americano atualmente como os comandados pelos fanáticos
talibãs e por certos aiatolás são exemplos complementares.
Mas na lenda de Lady Godiva, Freud destaca o que lhe interessava - a
questão da interdição. Estavam todos proibidos de ver a nudez da
senhora. E como os interditos sociais e psicológicos são muito mais
fortes do que pensamos, a quebra do pacto do não-ver por aquele que
quer ver é punida com a cegueira. É como se o expulsassem da
comunidade. No viés erótico freudiano o analista diz: "por haver
querido fazer o mal uso de teus olhos, utilizando-os para
satisfazer tua sexualidade, mereces ter perdido a vista". Ocorre a
lei do Talião, paga-se o crime na mesma moeda, perde a vista quem
tentou ver. "Na bela lenda da Lady Godiva", diz Freud, "todos os
vizinhos ficam reclusos em suas casas e fecham as janelas para
fazer menos penosa à dama a sua exibição, nua sobre o cavalo, pelas
ruas da cidade. O único homem que espia através das madeiras de sua
janela a passagem da beleza nua perde, como castigo, a vista".
A complementariedade de significados entre "A nova roupa do rei" de
Andersen e a Lady Godiva é instigante. Se na primeira era o rei que
estava nu, aqui é a Lady - variante da rainha, que exibe sua nudez.
O rei fingia estar vestido, a rainha sabia-se nua. E em ambos os
casos é alguém de fora da corte que consegue ver o que os demais
não podem ou não querem ver. Ver é uma ousadia. Fazer falar o que se
viu ou desmistificar a cegueira alheia é ousadia dupla.
A CEGUEIRA E O SABER (5)
As histórias policiais clássicas, seja em Agatha Christie ou
Sherlock Holmes, mostram que o detetive é aquele que vê
"melhor" que os outros as pistas do crime. Esse olhar nos
surpreende. Depois que nos desvenda os fatos, então nos
dizemos, é claro, por que não percebi isto antes? Mas o conto
de Edgar Allan Poe (1809-1849) "A carta roubada", que pode ser
encontrado no livro de mesmo título (editora L&PM), mostra que
o olhar policial, enquanto olhar oficial, às vezes não
consegue resolver um enigma. Assim é necessário que um outro
olhar fora do sistema venha revelar o que estava oculto.
Naquela história de Poe, o chefe de polícia de Paris procura
um certo Auguste Dupin para que o ajude a esclarecer o roubo
de uma carta. O curioso é que o policial sabe quem a roubou.
Foi um ardiloso ministro do rei que se apoderou do documento,
substituindo-o por outro semelhante. E esse ministro, tendo em
seu poder tal carta, chantagearia a personagem - provavelmente
a rainha -, a quem a carta comprometedora se dirigia. Como o
chefe de polícia procura e revira tudo e não encontra a
missiva, pede ajuda a Dupin. Este aceita o desafio.
Prontamente descobre e devolve a carta ao policial que, pasmo
e humilhado, pede que lhe explique como realizou tal façanha.
Em grande parte, o conto é a explicação de como o policial não
viu o óbvio. A carta roubada tinha sido posta num lugar bem
evidente pelo ladrão, e exatamente por estar tão evidente não
era vista. Esse o paradoxo que interessa à análise.
Sintomaticamente o texto de Poe começa por uma epígrafe, uma
frase de Sêneca: "Nada é tão prejudicial à sabedoria como a
excessiva sagacidade". Eis uma das linhas condutoras da
história: a denúncia da "excessiva sagacidade" do olhar que,
por querer ver demais, não vê o essencial, coisa que se dá em
diversos campos do conhecimento humano. Com efeito, o chefe de
polícia confessa que havia procurado em "todas" as partes,
desmontado móveis, perfurado cadeiras, aberto gavetas,
vasculhado espelhos, chapas de vidro, assoalhos, porões,
fendas de tijolos, argamassas, encadernações de luxo, usado
microscópios e nada encontrara. Por isto, Dupin, ao ouvir-lhe
a narrativa vai logo advertindo que "talvez o mistério seja um
tanto simples 'demais' (?) evidente 'demais'".
Como não lembrar uma vez mais a lenda do rei nu? Na narrativa
de Andersen é um menino, alguém também de fora, que aponta a
nudez dos fatos e no conto de Poe o narrador diz "que muitos
meninos de escola conseguem raciocinar melhor" que o policial.
O olhar excessivo, o hiperolhar da corte (e de certos críticos
e analistas) vê "demais". Já diziam os chineses: "o homem
inteligente é o que descobre o óbvio". Ou, Guimarães Rosa:
"sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer coisa". E
ilustrando essa dificuldade que temos de não ver o óbvio,
Dupin dá um exemplo: aquele jogo em que uma pessoa escolhe uma
palavra num mapa e o adversário tem que dizer qual é ela. A
tendência é o desafiado ir procurando a menor palavra e que
está mais escondida, quando às vezes a palavra escrita em
letras imensas e espaçadas, por ser visível, é ignorada.
A metáfora da visão é muito explorada no conto. Primeiro
Dupin, contrariando a lógica meridiana da polícia, diz que é
melhor examinar certas coisas "no escuro". É como se estivesse
zerando nosso olhar, reinventando o primeiro olhar,
desviciando a maneira de ver. E a seguir, quando vai ao
gabinete do ministro que surrupiou a carta, chega aí com
estranhos "óculos verdes", queixando-se de problemas de visão.
É um álibi às avessas. É como se se disfarçasse de cego para
ver melhor. Assim se a incapacidade do chefe de polícia de
achar a carta confirma que o pior cego é aquele que não quer
ver, o investigador Dupin mostra que o melhor "cego" é aquele
que sabe ver. Por isto, no "escuro", com seus "óculos verdes"
percebe que a carta tão procurada, na verdade, está à vista,
num porta-papéis barato pendurado por uma fita azul e ensebada
dentro de um envelope amassado e sujo. O esperto larápio da
carta sabia que iriam procurá-la em lugares secretos, por isto
a colocou num lugar à vista. Ao percebê-la, Dupin,
espertamente, troca a carta por outra, usando da mesma tática
do ministro quando trocou a carta verdadeira na mesa real
também por outra.
Nessa história, verdadeiro "jogo de cartas", Dupin afirma que
o policial conduziu a investigação erradamente porque não
acreditou na inteligência e astúcia do ministro, pois achava
que o ministro era "tolo porque adquiriu a fama de poeta". E
na alma do policial "todos os idiotas são poetas". Neste
ponto, Poe, que era poeta e construía seus textos
matematicamente, faz algumas considerações sobre "poetas" e
"matemáticos", revelando uma das chaves do mistério. Expõe a
tese de que o raciocínio matemático em si não leva ao
conhecimento se não estiver associado a algo mais, como a
poesia. E porque aquele que era investigado era ao mesmo tempo
"matemático e poeta", Dupin não poderia usar de um raciocínio
lógico trivial, mas teria que desenvolver diversas astúcias,
sendo também "poeta e matemático".
Jacques Lacan em seus "Escritos", com aquele seu estilo meio
esotérico e apesar de algumas frases machistas, analisa esse
conto levantando outras questões. Refere-se ao primeiro "olhar
que não vê nada", ao segundo "olhar que vê que o primeiro não
vê nada" e ao "terceiro que desses dois olhares vê o que eles
deixam a descoberto". Refere-se ainda a alguns personagens que
mereceriam um estudo particular: ao prestidigitador ou
ilusionista, que nos engana com seus gestos e palavras, e ao
nos convencer que o falso é verdadeiro nos transforma num ser
de sua ficção.
E ironicamente refere-se também àqueles que, como
"avestruzes", enfiam a cabeça na areia não querendo ver a
realidade enquanto outros depenam-lhe o traseiro exposto.
Leio notícia que foi inaugurado em Paris um restaurante onde
as pessoas têm a oportunidade de viver a experiência da vida
de um cego, pois aí os clientes comem no mais completo escuro.
Chama-se, apropriadamente, "Dans le noir" ("No escuro"). Os
garçons são cegos, e não apenas servem, mas atuam como guias
levando os fregueses até suas mesas. O restaurante está na
moda. Situa-se ali perto do Beaubourg e até o
primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin foi experimentar comer
no escuro.
A coisa ocorre assim: "antes de entrar na sala totalmente
escura, os clientes deixam em armários com cadeados, no bar do
restaurante, relógios, isqueiros, celulares e qualquer outro
objeto que emita a mínima luz. Os pratos também são escolhidos
antes de entrar no recinto. Entre as opções, há ainda o 'menu
surpresa', que só será descoberto quando o garfo for levado à
boca". A experiência supera qualquer instalação. As pessoas
passam por três ambientes com cortinas nos quais a luz vai
rareando até a sala escura, onde há muito barulho, pois para
compensar a falta de visão as pessoas falam alto. A surpresa
aumenta quando o cliente descobre que tem outras pessoas à sua
mesa.
Foi um ex-banqueiro e consultor de marketing social quem teve
essa idéia. E diz a matéria veiculada num site da BBC e
mandada pela médica brasileira Mônica Campos, residente nos
Estados Unidos, que alguns clientes acham-se ridículos durante
a experiência, outros têm crise de choro e angústia, mas o
fato é que o restaurante está sempre lotado. As pessoas pagam
para não ver.
É pitoresco, mas repito: as pessoas pagam para não ver, pagam
para comerem no escuro.
Não deixa de ser sintomático que se abra um restaurante onde
os que vêem vão experimentar a cegueira, exatamente numa
cultura de hipervisualização. Como se estivéssemos fatigados
de ver, agora queremos não-ver. Que seja por algumas horas,
não importa. É como se a poluição visual tivesse chegado a tal
extremo, que se sentisse a necessidade de recuperar outros
sentidos, experimentando o desver para, quem sabe?, ver de
novo.
Tomo esse restaurante como uma metáfora paradoxal de nossa
época. A modernidade que descobriu e aperfeiçoou a fotografia,
e que tendo conseguido essa façanha mobilizou-a criando o
cinema, e logo a seguir instalou a televisão dentro de nossas
casas para que víssemos o mundo e o universo vinte e quatro
horas por dia; a mesma modernidade que vem com essa enxurrada
de letras e palavras em camisetas, vitrines, anúncios
luminosos, que nos manda imagens dos planetas mais distantes e
detalhes das guerras e misérias mais horrendas; essa
modernidade que é um constante espetáculo de "strip-tease", no
qual o público e o privado, ou melhor, a sala de visitas e a
privada se acoplaram, essa modernidade de tanto ver, já não
vê. O mundo é projetado como um clipping de imagens
esfaceladas acompanhadas por um ruído ou ritmo qualquer. E, de
repente, na "cidade-luz", pagamos caro para comer no escuro.
Nesta série de lendas, mitos e textos literários que
comentamos nas cinco crônicas precedentes várias coisas se
destacaram. Há cegos, como o adivinho Tirésias, que
interpretam melhor os fatos do que os que enxergam. Há, por
outro lado, a comunidade dos cegos arrogantes, dos que negam
que se possa ver, como no conto de H.G.Wells. Há a cegueira
que sobrevem a uma comunidade como uma praga temporária, uma
doença, uma ideologia, como no "Ensaio sobre a cegueira" de
Saramago. Há a visão excessiva com sua racionalidade
irritante, que não enxerga o óbvio, como em "A carta roubada"
de Poe. Há, na história de Lady Godiva, o ato de ver como
forma de desafiar a interdição instaurada pela autoridade, que
ordena não ver. Ver a nudez das coisas é já transgredir. E há,
como na lenda "A nova roupa do rei", de Andersen, a denúncia
do pacto social da comunidade que faz um acordo em torno do
não-ver. Em vários desses casos é o estrangeiro, o forasteiro,
o menino, alguém não comprometido com o sistema que denuncia a
cegueira alheia.
"Homem cego" ( "Blind man") é o nome da revista que Marcel
Duchamp lançou em 1917 para criar polêmica sobre o urinol que
mandou para a exposição de vanguarda em Nova York, e que foi
recusado pelo júri, também de vanguarda. Esse título é
significativo. Ele vem do homem que decretou a morte da
pintura, da gravura, do desenho e de outras artes a que
chamava de "retinianas", porque careciam do olho para existir.
Em sua ojeriza à "arte retiniana", Duchamp não reconhecia nem
a fotografia nem o cinema como arte, senão como "um meio
mecânico de fazer alguma coisa". Dizia: "Não acredito no
cinema como meio de expressão" e fazia um jogo de palavras:
"CINEMA/ANEMIC". Propunha uma arte conceitual, na qual a idéia
era mais importante que a execução da obra pelas mãos do
artista. Daí a sua série de "ready-made" ou "object trouvé",
objetos industriais que ele expunha como obra de arte. Com
isto ele "deixava de ver" ou "negava-se a ver" toda a arte do
passado e cegava o artista moderno deixando-o com um só olho
na direção de um pretenso futuro. Duchamp é o genial profeta
da cegueira artística do século XX. Paradoxalmente ele
pretendia despertar uma nova maneira de ver o mundo e as
coisas. Achou que interditando o olhar se veria melhor. Mas
pode-se perguntar: será cegando o passado que veremos melhor o
futuro?
Segundo notícias nos jornais, o urinol de Duchamp acaba de ser
escolhido como a obra icônica da modernidade. Isto é um fato
sintomático. Isto explica as contradições do século XX.
Duchamp é uma figura complexa. Acertou e errou.
Errou porque o século XX, século do cinema, foi o século da
hipervisualidade. Acertou porque o século XX foi também o
século de uma visualidade cega. Não apenas na cegueira trazida
por Stalin, Mao e Hitler, mas outras formas de cegueira na
arte, que é necessário rever. O desafio é ver com novos olhos,
com um terceiro olhar o século XX e analisar aí as astúcias do
"homem cego" que, paradoxalmente, pretende ter um ultra-olhar,
mas que não vê o óbvio.
Esse homem que prefere comer no escuro, porque passar por cego
virou moda.
No avião, sentei-me ao lado de um cego. Fiquei um pouco ressabiado, porque
pensei que ia acabar tendo que participar de suas possíveis dificuldades
para interagir com aquele ambiente.
Equivoquei-me. Ele lá estava tranqüilo, na sua. Comecei a conversar com
ele somente quando a aeromoça começou a servir o lanche. Primeiro fiquei
observando como ele se comportaria. A aeromoça, veio com o carrinho
servindo a um e a outro e quando chegou a vez dele, ela pôs a bandeja na
sua frente e explicou-lhe tomando sua mão: "Aqui a salada". Pegou a outra
mão: "Aqui a carne". Pegou de novo a primeira mão: "Aqui a sobremesa".
Eu, reparando.
Dito isto, ela foi se afastando. O cego virando a cabeça, antes que ela se
afastasse de todo, perguntou-lhe: Mas qual é a comida? Murmurei para ele:
"Esta é que é a informação fundamental". E era. Mais do que saber
sumariamente onde estavam as coisas, o important era preparar seu paladar,
pois podia se dar que o cego nem gostasse de um daqueles pratos.
A aeromoça era gentil, mas não se havia dado conta do tipo de atenção que
tinha que dar ao cego.
E aí eu já estava conversando com o vizinho. Chamava-se Edson Ribeiro
Lemos, é professor, mora em Niterói e estava numa comitiva de meia dúzia
de cegos que iam ao Chile para um congresso internacional sobre os
problemas específicos que os afetam.
Quando chegou a hora do cafezinho a aeromoça passou de novo e colocou uma
xícara na mão do cego. E ele, com aquele sorriso de bondade, que só os
cegos têm, disse-me confidencial e ternamente:
- Ela não foi treinada para isto, foi gentil, mas me serviu a xícara com a
asa ao contrário em minha mão. E assim íamos falando. Quando me disse seu
nome e eu lhe disse o meu, seu rosto abriu-se fraternalmente e se indagou:
Como é que não reconheci sua voz? Eu o ouço sempre na televisão. E
referiu-se também à Marina, sabia de nossa viagem à Moscou, da Biblioteca
Nacional etc. Cego, mas acompanhava as coisas. Até as
ínfimas como eu.
Curioso, indago sobre a sua cegueira. É sempre uma situação
constrangedora. A pessoa pode pensar em perguntar, mas teme, por pura
delicadeza... Achei que ser franco, manter uma conversa direta era a
melhor forma de colocá-lo à vontade, ele que tão à vontade já estava
antes.
Veio-lhe a cegueira aos treze anos, um glaucoma. Antes, aos dez anos, ao
dar uma cambalhota na praia de Icaraí, o nervo ótico foi comprimido e
houve um deslocamento da retina. Quando levantou-se da cambalhota só via o
sol pelo canto do olho, uma mancha amarela. Perguntei-lhe sobre os sonhos
de um cego. O que vê, quando sonha? Um dia antes, minha mulher havia lido
um artigo onde havia uma revelação: quando se sonha e as cenas aparecem
tão visíveis, é porque o nervo ótico está sendo acionado. De tal modo que
a gente imagina que está vendo as coisas, e está mesmo.
- Com o cego é diferente, me diz Edson. Devo confessar que quanto mais o
tempo passa, mesmo a pessoa que ficou cega depois de adulta, vai vendo as
coisas cada vez mais sombreadas. E isto vai se modificando até que vira
uma lembrança meio escura, na neblina.
- Das coisas que vi, guardei as cores; mas mesmo essas esmaeceram. Da
minha casa tenho duas lembranças: a da infância, com mais claridade. Aí
vejo as coisas, os objetos ainda. Mas minha casa de adulto, onde sei
perfeitamente onde tudo está e como me locomover lá dentro, esta está na
meia luz, na penumbra.
- Este avião aqui, por exemplo: me situo perfeitamente aqui dentro,
controlo o que está ao redor, mas as coisas estão na penumbra. Disse-me
algo mais que não sabia. Que um pesquisador americano havia concluído que
a cegueira é colorida. Ele tem perguntado sobre isto a outros cegos, mas
não confirmam: O seu não-ver é amarelo. Há uma mancha amarela sempre à sua
frente. Mas quando se emociona ou se irrita a mancha fica vermelha.
- Será que há cegos daltônicos, pergunto-lhe, eu que sou daltônico
confesso e cego para tantas coisas. Rimos.
Falo-lhe de Marco Antônio Queiroz, cujo livro "Sopro no corpo", da editora
Rocco, narra como ele, jovem da zona sul que vivia uma típica e agitada
vida de adolescente acabou cego por causa da diabetes. Edson conhecia o
livro, a história de Marco Antônio, sabia de tudo.
Lá pelas tantas me perguntou:
- Vamos passar pelos Andes?
- Vamos, respondi, pensando se poderia explicar-lhe como eram as montanhas
de neve. Ele ficou cego na adolescência e poderia ter essa imagem na
memória.
E assim ia a conversa. Falou-me ainda de sua família: a mulher que
enxerga, as três filhas e as netas. Leva uma vida a mais normal
possível.
Quando passamos pelos Andes, ele dormia ao meu lado. Eu olhava a neve.
Como descrevê-la? O avião seguia. E eu olhava a neve.