O DISCRETO BATER DE ASAS DE ANJOS... - Rubem Alves
O Discreto Bater de Asas de Anjos...
O Victor é um adolescente. Arranjou um emprego no McDonalds. No
McDonalds trabalham adolescentes. Antes de iniciar o seu trabalho
eles são treinados. São treinados, primeiro, a cuidar do espaço em
que trabalham: a ordem, a limpeza, os materiais - guardanapos,
canudinhos, temperos, bandejas. É preciso não desperdiçar. Depois,
são treinados a lidar com os clientes. Delicadeza. Atenção.
Simpatia. Sorrisos. Boa vontade. Clientes não devem ser contrariados.
Têm de se sentir em casa. Têm de sair satisfeitos. Se saírem
contrariados, não voltarão. O Victor aprendeu bem as lições:
começou o seu trabalho. Mas logo descobriu uma coisa que não estava
de acordo com o aprendido: os adolescentes, fregueses, não cuidavam
das coisas como eles, empregados, cuidavam. Tiravam punhados de
canudinhos para brincar. Usavam mais guardanapos do que o necessário.
Punham as bandejas dentro do lixo. Aí o Victor não conseguiu se
comportar de acordo com as regras. Se ele e os seus colegas de trabalho
obedeciam as regras, por que os clientes não deveriam obedecê-las?
Por que sorrir e ser delicado com fregueses que não respeitavam as
regras de educação e civilidade? E ficou claro para todo mundo,
colegas e clientes, que o Victor não estava seguindo as lições...
O chefe chamou o Victor. Lembrou-lhe o que lhe havia sido ensinado. O
Victor não cedeu. Argumentou. Disse de forma clara o que estava
sentindo. O que ele desejava era coerência. Aquela condescendência
sorridente era uma má política educativa. Era injustiça. Os seus
colegas de trabalho sentiam e pensavam o mesmo que ele. Mas eram mais
flexíveis... Não reclamavam. Engoliam o comportamento não educado
dos clientes-adolescentes com o sorriso prescrito. E o chefe, sorrindo,
acabou por dar razão ao Victor. Qual a diferença que havia entre o
Victor e os seus colegas? O Victor tem Síndrome de Down.
O Edmar é um adolescente. Calado. Quase não fala. Arranjou um
emprego como lavador de automóveis num lava-rápido. Emprego bom para
ele porque não é necessário falar enquanto se lava um carro. Mas
de repente, sem nenhuma explicação, o Edmar passou a se recusar a
trabalhar. Ficava quieto num canto sem dar explicações. O Edmar,
como o Victor, tem Síndrome de Down. A “Fundação Síndrome de
Down“, que havia arranjado o emprego para o Edmar, foi informada do
que estava acontecendo. Que tristeza! Um bom emprego - e parece que o
Edmar ia jogar tudo fora. O caminho mais fácil seria simplesmente
dizer: "Pena. Fracassamos. Não deu certo. Pessoas com Síndrome de
Down são assim..." Mas a equipe encarregada da inclusão não
aceitou essa solução. Tinha de haver uma razão para o estranho
comportamento do Edmar. E como ele é calado e não explica as
razões do que faz, uma das pessoas da equipe se empregou como lavadora
de carros, no lava-rápido onde o Edmar trabalhava. E foi lá, ao lado
do Edmar, que ela descobriu o nó da questão: o Edmar odiava o
"pretinho" - aquele líquido que é usado nos pneus. Odiava
porque o tal líquido grudava na mão, não havia jeito de lavar, e a
mão ficava preta e feia. O Edmar não gostava que sua mão ficasse
preta e feia. Todos os outros lavadores - sem Síndrome de Down -
sentiam o mesmo que o Edmar sentia - também eles não gostavam de ver
suas mãos pretas e sujas. Não gostavam mas não reclamavam. A
solução? Despedir o Edmar? De jeito nenhum! A “lavadora“
pôs-se a campo, numa pesquisa: haverá um outro líquido que produza
o mesmo resultado nos pneus e que não seja preto? Descobriu. Havia. E
assim o Edmar voltou a realizar alegremente o seu trabalho com as mãos
brancas. E, graças a ele, e ao trabalho da "lavadora", todos os
outros puderam ter mãos limpas ao fim do dia de trabalho.
Essa é uma surpreendente característica daqueles que têm
Síndrome de Down: não aceitam aquilo que contraria o seu desejo e
suas convicções. O Victor desejava coerência. Não iria engolir o
comportamento não civilizado de ninguém. O Edmar queria ter suas
mãos limpas. Não iria fazer uma coisa que sujasse suas mãos. Quem
tem Síndrome de Down não consegue ser desonesto. Não consegue
mentir. E é por isso que os adultos se sentem embaraçados pelo seu
comportamento. Porque os adultos sabem fazer o jogo da mentira e do
fingimento. Um adulto recebe um presente de aniversário que julga
feio. Aí, com o presente feio nas mãos, ele olha para o presenteador
e diz sorridente: "Mas que lindo!" Quem me contou foi o Elba
Mantovaneli: ele deu um presente para a Andréa. Mas aquele presente
não era o que ela queria! Ela não fingiu e nem se atrapalhou. Só
disse, com um sorriso: "Vou dar o seu presente para o Fulano. Ele vai
gostar..."
As crianças normais, na escola, aprendem que elas têm de engolir
jilós, mandioca crua e pedaços de nabo: coisas que não fazem
sentido. Aprendem o que é “dígrafo“, “próclise“,
“ênclise“, “mesóclise“, os “usos da partícula se“...
Você ainda se lembra? Esqueceu? Mas teve de estudar e responder certo
na prova. Esqueceu, por quê? Porque não fazia sentido.
Fazer sentido: o que é isso? É simples. O corpo - sábio -
carrega duas caixas na inteligência: a caixa de ferramentas e a caixa
de brinquedos. Na caixa de ferramentas estão coisas que podem ser
usadas. Não todas, evidentemente. Caso contrário a caixa teria o
tamanho de um estádio de futebol. Seria pesada demais para ser
carregada. Se vou cozinhar, na minha caixa de ferramentas deverão
estar coisas necessárias para cozinhar. Mas não precisarei de
machados e guindastes. Na outra caixa, de brinquedos, estão todas as
coisas que dão prazer: pipas, flautas, estórias, piadas, jogos,
brincadeiras, beijos, caquis... Se a coisa ensinada nem é ferramenta e
nem é brinquedo, o corpo diz que não serve para nada. Não aprende.
Esquece. As crianças "normais", havendo compreendido que os
professores e diretores são mais fortes que elas, por ter o poder de
reprovar, submetem-se. Engolem os jilós, as mandiocas cruas e os
pedaços de nabo, porque terão de devolvê-los nas provas. Mas logo
os vomitam pelo esquecimento. Não foi assim que aconteceu conosco? As
crianças e adolescentes com Síndrome de Down simplesmente se recusam
a aprender. Elas só aprendem aquilo que é expressão do seu desejo.
Entrei numa sala, na "Fundação Síndrome de Down". Todos
estavam concentradíssimos equacionando os elementos necessários para
a produção de um cachorro quente. Certamente estavam planejando
alguma festa... Numa folha estavam listados: salsicha, pão, vinagrete,
mostarda... Entrei no jogo. "Esse cachorro quente de vocês não é
de nada. Está faltando a coisa mais importante!" Eles me olharam
espantados. Teriam se esquecido de algo? Seu cachorro quente estaria
incompleto? Acrescentei: "Falta a pimenta!" Aí seus rostos se
abriram num sorriso triunfante. Viraram a folha e me mostraram o que
estava escrito na segunda folha: "pimenta".
Aí, vocês adultos, vão dizer: "Que coisa mais boba estudar um
cachorro quente!" Respondo que bobo mesmo é estudar dígrafo, usos
da partícula se, os afluentes da margem esquerda do Amazonas e
assistir o "Show do Milhão". Um cachorro quente, um prato de
comida, uma sopa: que maravilhosos objetos de estudo. Já pensaram que
num cachorro quente se encontra todo um mundo? Querem que eu explique?
Não explicarei. Vocês, que se dizem normais e inteligentes, que
tratem de pensar e concluir.
A sabedoria das crianças e adolescentes com Síndrome de Down diz:
"Dignas de serem sabidas são aquelas coisas que fazem sentido, que
têm a ver com a minha vida e os meus desejos!" Mas isso é
sabedoria para todo mundo, sabedoria fundamental que se encontra nas
crianças e que vai sendo progressivamente perdida à medida que
crescemos.
E há o caso delicioso do Nilson que foi eleito "funcionário do
mês" no McDonald‘s. E não o foi por condescendência,
colher-de-chá... Foi por mérito. O Nilson é um elemento
conciliador, amigo, que espalha amizade por onde quer que ande... Todos
gostam dele e o querem como companheiro.
É preciso devolver as pessoas com Síndrome de Down à vida comum de
todos nós. Nós todos habitamos um mesmo mundo. Somos companheiros.
É estúpido e injusto segregá-los em espaços e situações
fechadas. Claro que vocês já leram a estória da Cinderela -
também conhecida como "Gata Borralheira". Sua madrasta a havia
segregado no "borralho" Não podia frequentar a sala. Todas as
estórias são respostas a situações reais. Pois eu acho que, na
vida real, a "Gata Borralheira" era uma adolescente com Síndrome
de Down de quem mãe e irmãs se envergonhavam. Mas a estória dá
uma reviravolta e mostra que ela tinha uma beleza que a madrasta e
irmãs não possuíam. E eu sugiro que sua beleza está nessa
inteligência infantil, absolutamente honesta, absolutamente
comprometida com o desejo que nós, adultos, perdemos ao nos submeter
ao jogo das hipocrisias sociais.
Quem quiser saber mais poderá visitar a "Fundação Síndrome de
Down", em Barão Geraldo. É uma instituição maravilhosa! E digo
que me comovi ao observar o carinho, inteligência e persistência
daqueles que lá trabalham. E andando pelos seus corredores e salas de
repente senti que havia lágrimas nos meus olhos: lembrei-me do Guido
Ivan de Carvalho que foi um dos seus idealizadores e construtores,
juntamente com a Lenir, sua esposa. O Guido não está mais lá.
Ficou encantado... Sugeri à Lenir que plantasse, para o Guido, uma
árvore, no jardim da Fundação. Se vocês não sabem, na
estória original da Cinderela não havia Fada Madrinha. Quem protegia
a Cinderela era a sua mãe morta, que continuava a viver sob a forma de
uma árvore...
Pensando naquelas crianças e adolescentes lembrei-me de uma
afirmação do apóstolo Paulo: "Deus escolheu as coisas tolas
desse mundo para confundir os sábios " porque a loucura de Deus é
mais sábia que a sabedoria dos homens...“ Quem sabe será
possível ouvir, naqueles rostos sorridentes, um discreto bater de asas
de anjos...
Quando estive em Portugal, no ano passado, descobri, na Vila das Aves, a
Escola da Ponte. Contei sobre ela no livro A escola com que sempre
sonhei sem imaginar que pudesse existir, publicado pela Papirus. Pois
uma das coisas que me surpreenderam naquela escola foi ver crianças
com Síndrome de Down integradas com as outras crianças: eram suas
companheiras, iguais a elas, sem que ninguém as tratasse como casos
especiais. Retornei à Escola da Ponte, faz uns meses, com um grupo de
educadores brasileiros. E eu andava distraído pelo jardim da escola
quando ouvi um grito: "Rubem". Era o André, um deles... Maior e
mais forte do que eu, correu para mim e me deu um abraço que me
levantou do chão... O André se especializou em computadores e criou
uma homepage através da qual se comunica com o mundo!
(Correio Popular, Caderno C, 23/09/2001.)
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