A Bengala e a Mulher Invisível
Certa manhã, acordei angustiada com a sensação de ter tido um
pesadelo
do qual ficou apenas uma sufocante indagação. Corri para a casa de
um
amigo e sem conter o choro e a ansiedade, lançei a pergunta: - Você
acha
que eu seria quem sou se eu enxergasse como você? E você seria quem
é se
não enxergasse?
O tema foi degustado durante o café e ele me relatou cenas de um filme
policial, cuja trama centrava-se nos apuros e peripécias de uma mulher
cega para escapar do bandido e testemunhar um crime. Obviamente,
não chegamos a uma conclusão definitiva sobre minha questão
ontológica.
O tempo passou e compreendi que, naquele instante, eu fora tomada pela
dolorosa evidência de um desfecho implacavel: a consciência da
cegueira contra a qual eu havia travado e perdido tantas batalhas e
isto seria apenas o prenúncio de novos recomeços e novos ocasos.
Em minha família de oito irmãos, cinco perderam a visão
progressivamente. Nascemos com a acuidade e o campo visual reduzidos
e podíamos perceber as pessoas, os objetos, as cores e os estímulos
em geral desde que próximos de nossos olhos. Os primeiros indícios
desta limitação foram percebidos em decorrência de um tremor da
pupila (nistagmo) que se manifestava de forma persistente e
involuntária, mas, o comprometimento da visão ainda não nos
impedia de
andar, correr, brincar e desempenhar outras atividades de forma
independente. Embora fossemos afetados pela mesma patologia ocular,
o resíduo visual era variável e reagíamos, cada qual ao seu modo,
ao
agravamento desta deficiência.
Em casa, não fomos poupados e todos eram tratados da mesma forma,
seja para brincar ou trabalhar, independentemente de enxergar mais ou
menos. Por força das circunstâncias, aprendemos a dividir espaços
e
responsabilidades, a compartilhar roupas, livros, objetos e outros
pertences. Meus pais mal sabiam ler e escrever, não receberam nenhum
tipo de orientação especial, desconheciam a causa e a evolução
da
deficiência. As consultas oftalmológicas tornavam-se mais constantes
e consistiam em mera prescrição de óculos ou troca de lentes.
Moravámos em um bairro de periferia e brincavámos na rua com outras
crianças. Bonecas, cantigas de roda, jogos, cabanas, pés de manga e
de
jaboticaba, teatro de rua, bailes, shows e brincadeiras surgem em minha
memória como reminiscências de uma infância e adolescência
permeadas
de interações lúdicas, cujos conflitos e traumas somente foram
compreendidos e ressignificados mais tarde.
Aprendi a ler e escrever fora da escola, graças à
uma professora leiga que preparava cadernos de caligrafia, reforçando
com lápis preto margens e linhas do papel. E eu usava uma regua para
não extrapolar os limites demarcados. Na escola, cálculos e
atividades
orais, interpretação de textos e memorização de conteúdos
favoreciam
meu desempenho. Em compensação, padecia com tarefas que exigiam
coordenação motora, visualização, confecção de material,
cartografia
e desenho.
Usava óculos de lentes grossas e por essa razão, na escola e na
vizinhança, chamavam-me "quatro-olho", o que me aborrecia e eu jamais
revidava. Os tropeços eram contínuos, aluz do sol perturbadora e a
locomoção cada vez mais vacilante, sobretudo, à noite, quando se
observava uma sensível queda da visão. Não conseguia distingüir
pessoas
e objetos a uma certa distância, o que costumava ser erroneamente
interpretado, causando inseguranças e constrangimentos. Estes fatores
produziam uma ambigüidade entre o ver e não-ver e, assim,
oscilávamos
entre ser e não ser cegos. A nossa percepção visual era sutil,
fugidia e nebulosa, um enígma a ser decifrado.
Casualmente, deparei com uma lupa manual e esférica que aumentava o
tamanho das letras e usei várias destas lentes até que se tornaram
inúteis com a perda definitiva da visão. A conjugação de
óculos e lupas
despertava ainda mais a curiosidade das pessoas que faziam sempre as
mesmas perguntas e comentários; davam receitas infalíveis, indicavam
cirurgias, tratamentos miraculosos, curas espirituais e toda sorte de
magia ou crendices populares, o que ainda acontece sob a mira da
bengala.
A perda cada vez mais acentuada da visão alterava a rotina da
família e repercutia na escola e em outros espaços sociais.
A assistência médica era precária, o que retardou o diagnóstico
da
deficiência, cujo prognóstico era sombrio e os tratamentos eram
desconhecidos ou apenas tentativas incipientes. Aos poucos, as despesas
com lentes e óculos sobrecarregavam o orçamento. Neste contexto,
diversos profissionais desaconselharam nossa permanência na escola por
acreditarem que se tratava de sacrifício, um esforço inútil, pois
no
entender daqueles profissionais não poderíamos, no futuro, exercer
uma profissão.
Apesar das restrições e de um percurso escolar sinuoso, eu gostava
de
estudar e não queria abrir mão de minhas aspirações. Sempre fui
aluna
aplicada e inteligente, o que atenuava a resistência dos professores.
Durante o curso pré-vestibular, o professor de francês observou meu
interesse e habilidade para o aprendizado desta língua e sugeriu que
eu
tentasse uma bolsa de estudos na Aliança Francesa. Segui sua
orientação
e consegui estudar lá, como bolsista, durante vários anos até
completar
o curso. Eu acompanhava as aulas como ouvinte, lia os textos com a
lupa e fazia as provas oralmente. Usei meus conhecimentos de francês
para ganhar dinheiro como professora particular de vestibulandos e
postulantes de pós-graduação ou doutorado na França.
As provas do vestibular foram gravadas e realizadas em sala especial
com o auxílio de ledores incumbidos de passar o gabarito para o
formulário. Este procedimento foi utilizado, posteriormente, em
concursos públicos, depois de ter enfrentado resistências e
objeções
para inscrever-me, pois ainda não vigorava a lei de reserva de
vagas para pessoas com deficiência.
A escolha de um curso universitário não foi fácil, pois oscilei
entre as
letras e as humanidades. Recorri à orientação vocacional e deparei
com
uma enfática e desanimadora explicitação de restrições e
obstáculos.
Assim, tomei a decisão corajosa e solitária de fazer o vestibular
para o
curso de letras, em uma universidade particular e o de psicologia em uma
universidade pública. Fui aprovada em ambos e desisti daquele
que era financeiramente inviável.
Ao ingressar na universidade, passei a usufruir dos serviços de
saúde, das possibilidades de estágios, monitorias e bolsas de
trabalho.
Freqüentei o hospital-escola, realizei exames especializados, entrei
em
contato com diversos especialistas e, finalmente, tomei conhecimento do
diagnóstico e da evolução desta deficiência até então uma
incógnita em
minha vida. Contudo, não obtive dos especialistas a revelação
acerca
da perda irreversivel da visão.
ALQUIMIAS DE UMA SOBREVIVENTE
Namorei um estudante de medicina que se interessou por minhas
pigmentadas retinas e, graças a ele, tomei conhecimento do prenúncio
de cegueira. Reagi bruscamente, pois quis terminar o namoro e deixá-lo
livre para encontrar uma mulher menos complicada. Ele compreendia estes
arroubos e apoiava-me inteiramente. Com ele, aprendi a cozinhar, a
gostar de cinema, teatro, música, literatura, artes, acampamentos etc.
Um dia, ele me presenteou com uma máquina de escrever e um manual de
datilografia. Entre um plantão e outro, corrigia as lições que
eram
refeitas quantas vezes fossem necessárias, o que me possibilitou
redigir os trabalhos e as provas da faculdade e de concursos públicos.
Não raro, eu refazia um trabalho por não ter percebido que a fita da
máquina havia acabado e que eu estava datilografando no branco. Além
da
máquina de escrever, eu usava um gravador e recorria a ledores
voluntários ou contratados. Usava a datilografia e o gravador também
para fazer transcrições de palestras, seminários, entrevistas e
outros conteúdos, o que se apresentava como possibilidade de trabalho
remunerado.
Após a formatura, Exerci a profissão de psicóloga clínica
durante um
ano e entrei para o mestrado de filosofia, mas não elaborei a
dissertação por estar no auge do ativismo sindical. Fui uma das
fundadoras e primeira presidente do Sindicato de Psicólogos do Estado
de Minas Gerais. Participei também da diretoria do Conselho Regional
de Psicologia. O fato de ser psicóloga com uma trajetória de "aluna
especial" motivou minha contratação para um projeto de consultoria,
junto à Secretaria Estadual de Educação. O trabalho consistia na
elaboração de um diagnóstico da situação de um centro de apoio
aos
alunos com deficiência visual de uma escola pública de ensino
regular .
Ironicamente, fui contratada pela mesma Secretaria como telefonista
para trabalhar com um equipamento adaptado. Ao mesmo tempo, a pesquisa
resultante da consultoria teve ampla repercussão e eu passei a atuar
no
âmbito da educação especial, fazendo das deficiências objeto de
estudo e de trabalho.
Travei batalhas para realizar concursos públicos e para efetivar
minha admissão que fora duplamente interseptada pelos setores de
saúde
no Estado e no Município. Finalmente, depois de muita batalha,
concentrei minhas atividades profissionais na rede municipal de
educação de Belo Horizonte. Na prefeitura e fora dela, minha
atuação
tem sido intensa, diversificada e desafiadora. Além das
atribuições
decorrentes de meu vínculo com a prefeitura, presto serviço de
consultoria, ministro palestras, cursos e ações similares. Trata-se
de
uma atuação polivalente por envolver ações de gestão
política, de
formação educacional e de elaboração teórico-prática.
Trabalhei em uma escola municipal de ensino especial para crianças com
deficiência mental, autismo e outras síndromes, na qual eu me sentia
deslocada e pouco à vontade por não me identificar com o projeto
pedagógico e não conseguir vislumbrar uma perspectiva satisfatória
nem para mim, nem para a escola. Atuei no Centro de Aperfeiçoamento
dos
Profissionais da Educação-CAPE, onde foi possível articular a
educação
comum e especial em um mesmo projeto. O CAPE representou uma agência
de formação em serviço, na qual eu ensinava e aprendia
sinultaneamente.
Após minha passagem pelo CAPE, ampliei ainda mais minha atuação,
ao
participar da equipe de gestão da política educacional da Secretaria
Municipal de Educação. Neste contexto, vivenciei conflitos e
tensões de
diversas forças atuantes, desvelei labirintos e meandros da engrenagem
institucional e aprendi a conviver com limites e possibilidades do
complexo panorama das políticas públicas.
Nesta caminhada, tornei-me presidente do Conselho Municipal da Pessoa
Portadora de Deficiência de Belo Horizonte. Esta experiência tem
evidenciado a fragmentação e fragilidade do movimento de pessoas com
deficiência, assim como a desarticulação entre vários setores
governamentais e destes em relação aos Conselhos deliberativos ou
consultivos que também se mostram desarticulados entre si.
O movimento de pessoas com deficiência é constituído por
múltiplas
entidades, geralmente, organizadas por áreas de deficiência e
protagonizado por lideranças, familiares, dirigentes, políticos etc
que
despontam no cenário de lutas, de interesses e de conquistas
historicamente acumuladas. As ações governamentais são
insuficientes,
pulverizadas, com sucessivos cortes ou desvios de verbas e franco
descumprimento deprioridades, tendo como consequência um quadro de
calamidade na saúde pública e na qualidade de vida da população.
Neste
contexto, compete aos Conselhos favorecer a ampla participação
popular em todas as instâncias de decisão, promover e consolidar um
projeto de caráter emancipatório, tendo como referência a efetiva
participação dos usuários na gestão dos recursos e no controle
social
das políticas públicas, um ideal a ser concretizado.
A posição de liderança, junto ao Conselho, justificou minha
transferência para a Secretaria Municipal de Direitos da Cidadania,
o que se deu em um contexto de transição de governo e da
implantação
de uma ampla reforma administrativa na prefeitura. Mais uma vez, deparo
com a falta de condições para o desempenho de minhas funções,
além da
dificuldade de acesso ao local de trabalho e vejo-me impelida a
reinventar novas estratégias de adaptação.
O meu percurso profissional tal como o acadêmico é sinuoso e
tumultuado, um incessante exercício de versatilidade. O fato de
pertencer ao quadro efetivo do magistério representa um vínculo
estável. Contudo, as condições de trabalho sempre foram
instáveis,
arduamente conquistadas e construídas de acordo com a conjuntura e
as contingências ora mais, ora menos favoráveis. O que prevalece é
a
a improvisação, a criação de recursos e alternativas
provisórias ou
exporádicas. Enfim, a interação positiva de solicitude e
camaradagem
de colegas, chefes e outros agentes acentuam o esforço dispendido
individualmente ou pelo grupo de trabalho, diante da falta ou
ineficiência do apoio institucional.
O OLHAR DO OUTRO
Enfrentei maratonas terapêuticas na tentativa frustrada de evitar a
cegueira. Fiz tratamentos imunológicos, tomei séries infindáveis
de
vacinas, diversos medicamentos e realizei cirurgias inclusive fora do
Brasil. Nada conseguiu deter a perda da visão ainda mais acelerada
pela incidência de glaucoma e catarata que impuseram novos tratamentos
e intervenções cirúrgicas.
Esgotadas as alternativas, decidi fazer um treinamento de orientação
e
mobilidade para aprender o manejo da bengala. Ao mesmo tempo, aprendi
a ler e escrever por meio do sistema braille. Troquei a máquina de
datilografia pelo computador, o que representou um novo aprendizado.
Utilizo leitores de tela com síntese de voz como meios de acesso à
leitura, escrita e à informação em geral, o que possibilita
acionar o
correio eletrônico e navegar na internet de forma autônoma. A
assimilação destas habilidades contribuiu decisivamente para a
ampliação das possibilidades de estar informada e integrada, apesar
de
ter sido uma prova de resistência, tolerância e resignação.
A bengala e o braille, tal como as lentes e lupas, constituem alvo de
curiosidade, comentários e interpelações por vezes invasivas e
desconcertantes. Certo dia, Uma amiga ocasional entrou em minha casa,
deparou com a bengala em um canto e aquela subta visão deixou-a
atônita. Ela não conseguia compreender porque optei por usá-la e
tentou
convencer-me de que eu poderia valer-me de amigos ou de acompanhantes
para me deslocar seja para onde fosse. Esta Foi uma experiência
dificil, pois não conseguíamos entrar em entendimento. Ela
desapareceu
de meu convívio e, sem o saber, mostrou-me que a cegueira é uma
ferida
narcísica que penetra e corrói as entranhas, desestabiliza e
tensiona
o circuito das interações humanas.
A falta da visão produz uma reorganização dos sentidos e das
funções
mentais em que A destresa tátil, a discriminação auditiva,
olfativa,
o raciocínio, a memória, a capacidade verbal etc constituem
poderoso referencial perceptivo. Contudo, as abordagens e
representações em torno da perda da visão e das pessoas cegas,
geralmente, concentram-se em limitações, dificuldades, obstáculos,
restrições, impedimentos ou incapacidades. Dificilmente, o potencial
positivo, representado por habilidades, estratégias e diferentes
esquemas da experiência não visual são compreendidos ou
devidamente
valorizados. O que é imediatamente visivel é a imagem congelada de
pessoa cega, desprovida de individualidade, desejos e aspirações.
A maioria das pessoas interage com este protótipo perfilado a partir
de
uma teia de construtos e noções errôneas culturalmente
introjetados.
A solidariedade anônima é surpreendente e reveladora dos mais
grotescos
aos mais requintados gestos que se manifestam nas ruas, dentro dos
ônibus e em outros ambientes nos quais as pessoas hesitam ao se
aproximarem, pois me confundem com aquela imagem subtamente vivificada
diante de si. Assim, continuo invisivel como pessoa em carne e osso,
viva e ativa, com características, peculiaridades e vida próprias.
Não existo, pois, aos olhos daqueles que só conseguem perceber e
projetar estereótipos e convenções tão ardilosamente formatados
no
imaginário social. Texto publicado no livro "Do Sentido... pelos sentidos... para o sentido Sentidos das pessoas com deficiências sensoriais" Organizado pela profa Elcie F. Salzano Masini Editora Vetor São Paulo 2002 ------#extPart_000_0061_01C1C68E.B3DC4EE0--
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