MEDIDA DA LÍNGUA
Leniro Alves
Alguém
definiu o Affonso Romano de Sant'anna como um escritor crônico, uma definição
que deve tê-lo envaidecido, tanto pela felicidade de quem a fez, quanto pelo
tanto de verdade que está contida nela. Isso me fez pensar que existem também
os não escritores crônicos, aqueles que, por mais que queiram, não conseguem
juntar palavras sem que haja um senão qualquer a ser notado.
No
meu caso, isto se manifestou logo nas primeiras redações que me mandavam fazer,
por causa dos desacertos com a ortografia. Não fosse a criação do dosvox[1] e o
surgimento de uma lista de discussão que aceita inclusive os escritos com a
pretensão de ser não mais do que uma mostra de exercícios
besterológicos, nem isto teria eu coragem de escrever por conta desse
trauma. No dosvox, pro cara saber
se o que está lendo foi grafado
corretamente, tem que se dispor a interromper a leitura. Como confio muito na
força da preguiça, notadamente daqueles que gostam de ler esse tipo de coisas,
deixei vir à tona a cara-de-pau que trazia guardada, mesmo sem o saber. Fico à
vontade na Lista e me sinto em casa. É
sempre um risco esse negócio do cara se sentir em casa, pois é aí que se despem
todas as máscaras. E, no caso que se segue, houve a introjeção da teoria dos
que pensam que a escola deve ser um prolongamento da casa.
Cursava
eu o segundo ano do segundo grau em um colégio que, devido aos cegos brilhantes
que por lá passaram antes de mim, oferecia bolsas de estudos a outros cegos,
encaminhados pelo Instituto Benjamim Constant, acreditando que todos eles
fossem da mesma laia. Neste colégio, a professora de português resolveu animar
o ambiente, ao dividir a turma em dois grupos e propor alguns jogos. Com o
espírito de competição exacerbado, a turma participava como nunca. Em um desses
jogos, ela dizia uma frase que era representada pelos participantes de um dos
grupos, enquanto os outros tinham que descobrí-la através da mímica. A coisa
ficava feia para mim, pois me deixavam à margem. Deu-se, então, que ela propôs
a cada grupo, alternadamente, dizer a marca de alguma coisa iniciada por uma
determinada letra. E tome marca de carros começando pela letra c, marca de
sorvete começada por k,enfim, marca disso começada por aquilo... até chegar a
maldita hora da marca de cigarro
começada pela letra r. Ávido por participar, pois,
nesse caso, não me sentia excluído, mandei um "roliud" em alto
e bom som. Lembro que me ergui para proferir aquilo e, ainda de pé, senti o
tamanho da besteira. Desejei que o chão se abrisse sob meus pés e como os
buracos só aparecem quando menos se espera, o chão não se abriu.
Não
sei se ficou claro que a cegueira foi a responsável por aquela mancada. Se enxergasse, naturalmente, estaria
lendo esse nome a todo momento! A cegueira é sempre
uma boa desculpa. Se não consegui esclarecer isso, digo agora com todas as
letras (não sei se corretamente grafadas) e peço encarecidamente
a quem discordar que não se manifeste, sob pena de ter eu que concluir outra
coisa que é melhor não concluir, pois poderia ser ainda mais traumático. Cabe
ressaltar que aprendi que o correto é...(Gente, me deu um branco! ah! Sim, me
lembrei) "hollywood". Nada como o
tempo para nos fazer esquecer os tropeços e esse, como tantos outros,
também foi esquecido. Tanto que um dia,
quando liguei para a companhia de lixo local, por várias vezes, para que
viessem buscar um entulho, conseqüência de uma obra em casa, por mais que
ligasse, não conseguia fazer com que viessem. Resolvi escrever para um programa
de rádio narrando o que ocorria. Escrevi mais ou menos isso:
"Tenho
tentado fazer com que a comlurb (companhia de limpeza
urbana) venha recolher o licho, resultado de uma obra aqui ocorrida e já
ultrapassaram o praso
em que dizem fazer o serviço".
O
texto era mais longo e foi respondido por e-mail:
"É possível que,
se o seu PRASO fosse um
PRAZO razoável o suficiente para que recolhessem todo o LICHO
que determinadas pessoas produzem ao escrever, tivessem tempo para
recolher o seu “LIXO".
Magro
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Leniro Alves
Nestes
meus versos, faço dela o mote,
buscando
um pouco mais compreendê-la.
Somente
o homem a tem como dote.
Diz
coisas tristes. Mas, diz coisas belas.
Não
há aquele que a não adote.
Tanto
liberta quanto é uma cela.
Se
não afaga, é cruel chicote.
Quem
neste mundo poderá detê-la?
É
dom divino e endiabrado.
Sem
ela o homem se mantém calado.
Sem
ela ao menos um sentido míngua.
Não
é que a vida assim perca o sentido,
porém,
por certo, o homem é medido
pela
medida como usa a língua.