A Insustentável Leveza do Braille
RESUMO
O sistema braille é universalmente associado à falta da visão e, como
símbolo de cegueira, desperta curiosidade, fantasias e sentimentos. Para
as pessoas que não conhecem essa modalidade de escrita e leitura,
ao primeiro contato, o braille representa apenas pontos bordados no
papel, um conjunto de grãos ou de caroços esculpidos em uma superficie
lisa, um código indecifravel, uma incógnita, um mistério, uma especie
de hieróglifos... Para as pessoas cegas, representa
uma alternativa que amplia as possibilidades de informação, um
dispositivo emancipatório e desafiador.
A assimilação do braille em minha experiência pessoal caracterizou-se
por um movimento dúbio e hesitante de aproximação e recuo, impregnado
de sentido de perda. Nasci com acuidade e campo visual reduzidos e
utilizei recursos opticos que me possibilitavam o reconhecimento de
cores, imagens e objetos próximos dos olhos. Tratava-se de um resíduo
visual mais ou menos estável durante a infância e a adolescência; este
resíduo esvaiu-se progressivamente e de forma irreversivel na idade
adulta, apesar de minhas tentativas no sentido de preservá-lo. A
perspectiva do braille, neste contexto, representou uma ameaça que
pesava como chumbo, causava tensões, ansiedades e sentimentos
ambivalentes. Era como se fosse um veredito, um atestado, uma rendição
definitiva ao estado de cegueira, aquela cegueira anunciada contra a
qual lutei até a inevitável derrota.
Nem todos alcançavam esta dimensão conflituosa do braille em um
momento crucial de minha vida. Por isto, era difícil conviver com
as pressões e críticas abertas ou veladas dos que mostravam as
vantagens e os ganhos desta aquisição e questionavam meu aparente
desinteresse ou a resistência em relação ao aprendizado deste sistema.
Entretanto, não convém impor o braille como se fosse um paliativo
emergencial ou a mera instrução mecânica de uma técnica redentora
que pode ser assimilada automaticamente diante da privação do sentido
da visão. Assim, tive que vencer alguns traumas e fantasmas para fazer
aflorar o desejo de aprender o braille.
As primeiras tentativas foram desanimadoras, pois a tensão muscular
e a fadiga faziam-me desistir temporariamente. O código braille é
simples, objetivo, lógico e facilmente compreensivel. Dificil é a
morosidade da escrita e a assimilação da leitura tátil que foi
árdua, tediosa e lenta; produzia dormência e formigamento nas mãos
e nos braços, o que tornava a posição dos pontos sob o tato de dificil
discriminação. Ao escrever, apertava o punção como se fosse perfurar uma
superficie rochosa. Mesmo assim, insistia quase diariamente, ainda
que por pouco tempo, consciente da necessidade e não pelo prazer de
aprender. O prazer veio depois, quando consegui decifrar, sem
sacrifícios, aquele denso pontilhado aparentemente desprovido de
sentido.
Aprendi o braille por meio de um curso à distância, cujo material
utilizado consistia em impressos e gravações em fita cassete, enviados
por correspondência. Tratava-se de uma seqüencia de lições e exercícios
organizados e corrigidos por um profissional indicado pela instituição
para acompanhar-me neste aprendizado. As questões, comentários,
recomendações e outras interações necessárias eram gravadas e
intercambiadas alternadamente em um prazo definido de forma flexivel e
sistemática. Eu me identificava com essa modalidade de aprendizagem por
se tratar de uma alternativa condizente com minha disponibilidade, meus
objetivos e estilo pessoal. Assim, os primeiros rudimentos do sistema
braille foram introduzidos em minha rotina como uma tarefa cumprida em
distintos horários e em um tempo que variava segundo meu esforço ou
motivação momentâneos.
Ao concluir o curso, alguns meses depois, percebi que seria necessário
aprimorar a técnica de leitura para alcançar uma maior agilidade e
destreza tátil. Então, tratei de unir o útil ao agradável, ao associar
o treino do braille à aquisição de novas habilidades e conhecimentos.
Por exemplo, usei o braille para aprender noções de inglês e ainda
uso para exercitar o espanhol por meio de publicações editadas por
instituíções internacionais. Recentemente, entrei em contato com o
esperanto através do braille. Costumo levar uma revista ou um livro de
literatura para ler em hotéis, aeroportos, ônibus e aviôes durante
minhas viagens. Além disso, utilizo o braille rotineiramente, em
situações prosaicas, seja para etiquetar cds, fitas cassetes, pastas,
frascos, potes ou para imprimir uma marca nos objetos e utensílios de
minha casa. Enfim, a funcionalidade do braille foi inserida em meu
quotidiano, podendo ser acionada a qualquer momento em diferentes
situações.
AS CRIANÇAS E O BRAILLE
Recebi um convite para participar de uma atividade com duas turmas de
crianças de 6 anos em uma escola de educação infantil. A atividade
consistia em uma entrevista coletiva comigo e o tema era a minha
experiência de vida como pessoa cega. Tratava-se da culminância de
um projeto no qual as professoras haviam trabalhado com as crianças
informações básicas e elementares sobre a locomoção de pessoas cegas
e o sistema braille.
As crianças foram organizadas em uma grande roda comigo ao centro e
todas sentadas no chão. Cada uma delas trazia um crachá com seu nome
impresso em tinta e em braille. Um grupo de crianças iniciou a
entrevista e, a partir de minhas respostas, as outras participavam
espontaneamente, contavam casos e faziam comentários. As perguntas eram
simples e objetivas. Queriam saber como eu faço para atravessar as
ruas, como vejo televisão, como faço para comer, se conheço as cores
etc. Uma delas comentou que eu devo ter muita facilidade para andar
no escuro. Quiseram testar a bengala, o que provocou um alvoroço na
turma. Mostraram-me os pontinhos do braille e sabiam para que servem.
Certa vez, ao retornar de Natal para Belo Horizonte, no avião, eu lia
uma revista em braille, o que despertou a curiosidade de duas crianças
que viajavam ao meu lado. Era uma garota de doze anos que também lia um
livro e seu irmão de 6 anos. Durante uma demorada escala em Recife,
elas fizeram perguntas sobre o braille e eu procurei explicar de forma
simples e didática com uma breve demonstração. Elas se empolgaram,
decidiram escrever seus nomes e, juntas, conseguimos esta proeza.
A garota quis ir além e escreveu seu nome em braille na capa do livro
que lia. Depois, pediu-me para ditar as letras do alfabeto porque ela
queria mostrar ao pai o que aprendeu no avião.
Estas experiências ilustram a dimensão lúdica do sistema braille e a
plasticidade da percepção infantil para incorporar e naturalizar a
diferença. A projeção do sistema braille e a interação das crianças
cegas e não cegas contribuem para a desmistificação da deficiência,
a formação de princípios éticos, o exercício de cooperação e
solidariedade, entre outros valores que possibilitam a eliminação de
preconceitos e atitudes discriminatórias no presente e no futuro.
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