Interrogando a Deficiência: Sob o Impacto da Diferença
Elizabet Dias de Sá* Ao longo de minha vida pessoal e profissional, estou sempre em contato com situações dramáticas de centenas de pessoas desprovidas de recursos para suprir necessidades decorrentes de restrições de natureza física ou mental. Sou procurada por pessoas com diferentes tipos de deficiência ou seus familiares, professores e especialistas, emocionalmente fragilizados e desinformados diante de suas dificuldades. A casuística da falta de visão é a mais freqüente porque converti minha própria deficiência em objeto de estudo e de trabalho. As mães ficam apavoradas diante da fatalidade de um filho que nasceu desprovido da possibilidade de enxergar, de ouvir ou de falar. Observam que seu filho nasceu "perfeito", tornando-se paralítico ou evidencia retardo em seu desenvolvimento, manifesta sinais de distúrbios ou formas inesperadas. Estas mães entram em pânico e buscam, ansiosamente, respostas para suas indagações perturbadoras: como se relacionar com essa criança tão diferente do filho imaginado? Que tipo de brinquedos e de brincadeiras são apropriados para ela? Conseguirá interagir com as outras crianças? E as outras crianças vão zombar dela? Aprenderá a ler? Qual é a escola mais indicada? Conseguirá trabalho? O que será de seu futuro? O que fazer com ela ou por ela? Os professores não sabem como agir quando encontram um aluno cego ou surdo ou que não fala ou "nunca entende". Os especialistas ficam angustiados diante da diferença, do desvio e da heterogeneidade. Reclamam da escassez de instrumental teórico e demandam mais especialização para compreender e avaliar cada caso ou situação atípica. Os pacientes pouco ou nada sabem sobre a enfermidade que é irrecuperável ou irreversível na maioria dos casos. São pessoas que perderam, abruptamente, a visão e necessitam reorganizar-se para se reconhecerem, reconhecer o mundo e não sucumbir à cegueira. Alguns conservam apenas um resíduo visual e podem aprender a aproveitá-lo ao máximo por meio de exercícios persistentes e orientados. Os movimentos reivindicatórios - representados por pessoas com deficiência, seus familiares e outros - apresentam demandas por atendimento educacional especializado, pela remoção de barreiras arquitetônicas, acesso ao mercado de trabalho e garantia de direitos fundamentais.
A condição de "deficiente" é apontada, nestas situações, como
algo anormal, fora do comum, excepcional. Uma variedade de
comportamentos revela atitudes de negação da deficiência,
marginalização, superproteção e outros sentimentos confusos e
contraditórios, geralmente, mesclados de ambivalência, decepção,
culpa e rejeição. A presença de uma pessoa com deficiência provoca
reações emocionais, cujas proporções são surpreendentes. A deficiência
modifica o enredo da família, causando desequilíbrio e mal-estar.
Ocasiona efeitos importantes no desenvolvimento da personalidade e no
processo de vida social do indivíduo. O sentido da deficiência na vida
de uma pessoa é produto do entrelaçamento de sua história pessoal com
o meio social no qual vive.
Sobre a pessoa com deficiência incide o estigma da incapacidade e
da invalidez. Sobre ela recai o peso da menos valia e da opressão.
Existem aquelas que ousam desafiar as leis, ignoram supostas
inaptidões e mobilizam recursos no sentido de pleitear e tomar posse
dos espaços conquistados. Mas, numerosas são as pessoas que não
conseguem caminhar sem as próprias pernas porque estão emocionalmente
paralisadas diante dos membros inertes ou amputados. Grande é o
número de pessoas surdas que se recusam a experimentar as vibrações do
mundo, emudecidas pela explosão de sua própria dor. Incontáveis são as
pessoas cegas, confinadas em si mesmas e temerosas de enxergar a vida
com suas próprias mãos. Triste é a "animalização" de crianças e adultos
estagnados em seu crescimento pelas demandas de uma certa dotação
física ou mental. O "ceguismo", o "mutismo", as paralisias emocionais
e a "imbecilização" são fenômenos ocasionados pelo apego à concretude
e à dimensão corpórea da deficiência. O acesso à dimensão simbólica
ultrapassa os limites da deformidade e da privação, revelando
infinitas possibilidades.
A aceitação e a integração das pessoas com deficiência ainda são
objetos de discurso e de racionalizações. A corrente máxima de que
"somos todos iguais" serve mais para ocultar preconceitos e justificar
a exclusão do que para reconhecer a diferença. A imposição/exposição
da deficiência reflete dicotomias e ambigüidades de ações e atitudes. As
intenções parecem claras e as melhores possíveis. Obscuros são os afetos
e desejos que forjam uma imagem social negativa em torno da pessoa com
deficiência, produzindo estereótipos e rotulações.
Afinal, qual é o estatuto da deficiência? Como distinguir direito de
privilégio ou discriminação? Como normatizar a "eficiência"? Quais são
os patamares da igualdade e da diferença? Como se situam a
individualidade e a heterogeneidade nos diversos padrões de deficiência?
Castel, 1981, comparando as noções de doença e deficiência grave,
conclui:
Essa concepção é amplamente compartilhada pelo senso comum e remete
a uma imagem social ambígua acerca da pessoa com deficiência que é
vista, ao mesmo tempo, como debilitada, frágil e exemplo de força de
vontade e coragem diante da vida. Ressalva feita ao deficiente
mental de quem se espera docilidade e submissão e para quem a tutela é
mais abertamente declarada.
Castel questiona o espírito da lei cuja característica é tentar
unificar sob um mesmo rótulo e fazer depender de uma mesma instância de
decisão casos absolutamente heterogêneos. É o que presenciamos, por
exemplo, no contexto escolar, quando alunos são agrupados em turmas
mais ou menos homogêneas, de acordo com as dificuldades de aprendizagem
ou são segregados em escolas especiais, segudo um padrão de
deficiência ou tipo de excepcionalidade. No âmbito da
profissionalização, as pessoas com deficiência são aposentadas por
invalidez ou simplesmente são excluidas do mercado competitivo por não
se enquadrarem nos parâmetros da legislação existente.
Para Castel, Ao examinarmos as circunstâncias que cercam a vida das pessoas com deficiência, identificamos mecanismos de segregação, marginalização e exclusão, fomentados por políticas assistencialistas e filantrópicas. Não raro, estas pessoas são tratadas como inferiores, subalternas e infantis, estando sujeitas ao sentimentalismo de uma concepção autoritária. Para retirar as pessoas com deficiência da posição de "apêndice" da sociedade e reconhecer sua cidadania e identidade de sujeitos desejantes, será necessário reexaminar as concepções acerca da deficiência e seus corolários. Somente assim será possível redefinir políticas de reabilitação, compreendida em todos os sentidos de independência e de autonomia como dinâmica de recomposição da vida. Fonte: Revista Insigth-Psicoterapia: ano III, nº 25, p 24-5. Lemos São Paulo, 1992 (*) A autora é psicóloga, presidente do Conselho Municipal das Pessoas Portadoras de Deficiência de Belo Horizonte e trabalha na Secretaria Municipal de Educação da prefeitura de Belo Horizonte
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