A Especialização na Formação de Professores
Elizabet
Dias de Sá
Especialização
em Psicologia Educacional pela PUC/MG
A escola sempre foi alvo de questionamentos e de conflitos porque expõe
a diversidade e o compartilhamento de interesses, contradições, valores,
expectativas, direitos, identidades. Os profissionais que nela atuam também
ficam expostos, pois imprimem o modo de agir, as escolhas, as decisões e a
organização dos tempos e dos espaços. Os efeitos dessa dinâmica na ação
pedagógica permitem uma problematização das realidades vivenciadas e a
valorização da dimensão criadora do
trabalho. Trata-se de identificar as relações que se estabelecem com o
conhecimento bem como a dimensão cultural e seus reflexos nas interações dentro
e fora da escola.
Durante muito tempo, a escola foi concebida como instrumento funcional de formação de uma
ordem social e, nesse contexto, consolidava mecanismos de seletividade e de
exclusão, o que fica evidenciado na afirmação de que,
no século passado, a escola aparece proclamada
como direito de todos. Na realidade, ela não era equalitária, já que admitia
ser um instrumento para resolver o problema das crianças e jovens pobres e
desvalidos - presas fáceis da marginalidade. Ao longo dos anos, porém, aquele
tipo de escola propagado pela burguesia como equalitária passou a ser alvo de
crescentes críticas, pois, além de não garantir acesso a todos, não garantia,
ainda, a permanência do aluno no sistema escolar. (RODRIGUES e BRANDALISE, 1998, p. 33)
Nesse percurso, deparamo-nos com um modelo de
formação centrado na transmissão de conhecimentos técnicos e no treinamento de
habilidades básicas que visavam a qualificação para o ingresso no mercado de
trabalho (ver também verbete Currículo, no Dicionário do mesmo nome e o verbete
Formação do Professor no Dicionário Tempos e Espaços Escolares) O professor era
qualificado para desempenhar o papel de instrutor em uma perspectiva de
formação eminentemente acadêmica com ênfase na capacitação, treinamento e
reciclagem. Os aportes teóricos baseados no emprego de métodos e técnicas de
condicionamento operante reforçavam a cisão entre teoria e prática, produção e
transmissão de conhecimento. Assim, a
formação de educadores sofreu a influência da era industrial e do ulterior
movimento de reformas educacionais predominantes no decorrer do século passado.
A partir da década de 90 do século passado,
percebemos uma sensível mudança de perspectiva teórica, quando o professor
passou a ser reconhecido como protagonista das práticas educativas e a escola
como locus privilegiado dos processos
formativos de afirmação de identidades profissionais e culturais. O professor
deixa de ser o instrutor ou aulista
para se tornar professor pesquisador, mediador e coordenador do processo de
ensino , numa relação dialógica com os alunos. A qualificação profissional,
concebida como formação acadêmica distanciada da ação pedagógica, é superada, e
o foco principal passa a ser a formação permanente em serviço, referenciada nas
experiências individuais e coletivas vividas na sala de aula e no interior do
sistema escolar.
O
mito da especialização
A clássica divisão do sistema educacional em regular e especial com a manutenção de escolas especiais e serviços
especializados explica em grande medida a resistência dos educadores em relação
à escola inclusiva. Os profissionais da educação especial constituem uma casta
de especialistas com diferentes níveis de competência e são percebidos como
detentores de métodos, habilidades e procedimentos específicos para uma atuação
nem sempre pedagógica. Segundo Parecer n.17/2001 da Câmara de Educação Básica
do Conselho Nacional de Educação :
São considerados professores especializados em
educação especial aqueles que desenvolveram competências para identificar as
necessidades educacionais especiais, definir e implementar respostas educativas
a essas necessidades, apoiar o professor da classe comum, atuar nos processos
de desenvolvimento e aprendizagem dos alunos, desenvolvendo estratégias de
flexibilização, adaptação curricular e práticas pedagógicas alternativas entre
outras e que possam comprovar:
1.Formação em cursos de
licenciatura em educação especial ou em uma de suas áreas, preferencialmente de
modo concomitante e associado à licenciatura para educação infantil ou para os
anos iniciais do ensino fundamental;
2.Complementação de estudos ou
pós-graduação em áreas específicas da educação especial, posterior à
licenciatura nas diferentes áreas de conhecimento, para atuação nos anos finais
do ensino fundamental e no ensino médio.
Via de regra, os professores do ensino regular declaram que não foram
preparados para lidar com alunos
especiais e que não são pagos para trabalhar com educação especial.
Reclamam de turmas superlotadas que não comportam horários flexíveis,
atendimento individual, adaptações curriculares, métodos específicos e outras
demandas. Para esses professores, a
presença de alunos com deficiências físicas, sensoriais ou mentais, cria um
campo de tensões e desestabiliza o coletivo da escola. Para Mantoan (2001)
(...)
o ensino dicotomizado em regular e especial, define mundos diferentes dentro
das escolas e dos cursos de formação de professores. Essa divisão perpetua a idéia de que o ensino de alunos com
deficiência e com dificuldades de aprendizagem exige conhecimentos e
experiência que não estão à altura dos professores regulares.
A elaboração e a implementação de uma política
de formação coerente com o ideal de uma escola inclusiva devem romper com essa
dicotomia, assegurar o acesso a novos conhecimentos, a troca de experiência, a
reflexão sobre a prática, a articulação entre múltiplos saberes e fazeres. Os
processos formativos devem incorporar diferentes estratégias, face à
diversidade de situações colocadas pelo cotidiano das escolas. Nesse contexto
diverso e amplo, os professores devem se posicionar como sujeitos do processo
de formação permanente.
A escola é um espaço renovável no qual é
possível vivenciar a dinâmica e complexa atividade de elaboração de projetos e
de tomada de decisões. Os tempos e
espaços de formação constituem uma forma de redimensionar práticas, a partir de
desafios, impasses, situações inesperadas ou novas que se tornam objeto de
problematização e de conhecimento. A
dimensão individual da formação é uma das vertentes a ser considerada nas experiências
cotidianas do saber-fazer que contribui para o aprimoramento de novas
experiências e vivências. As posturas e
escolhas inerentes à rotina do ambiente escolar, as características e
particularidades presentes em um certo modo de perceber a realidade e de
interagir na sociedade e na cultura mostram a
forma de conceber o mundo e de entender o fenômeno educativo. Nessa
perspectiva, consideremos o depoimento de uma professora cega que trabalha em
uma escola pública de ensino regular:
Ser
cega me mostrou que a escola não tem conseguido formar pessoas que sentem
prazer na leitura, tal é e sempre foi a dificuldade que tive para conseguir
ledores ao longo de minha vida estudantil ou profissional. Mostrou-me também
como a leitura em voz alta é, para muitos, traumatizante e desritmada.
Apontou-me a dificuldade que as pessoas que enxergam têm para descrever
imagens, cenários ou espaços físicos.
(...) Aprendi a importância da organização, da pesquisa, dos estudos, da avaliação
constante, e principalmente, dos registros na vida do professor. (...)
Alfabetizar exigiu de mim o que se exige de qualquer alfabetizador, ou seja,
muito estudo sobre o tema e como a criança vivencia esse processo;
muita atenção aos conhecimentos prévios, interesses e avanços apresentados
pelas crianças. Ter claro e deixar
claro para cada aluno que ler e
escrever são habilidades construídas historicamente, fruto de necessidades
culturais. Tudo isso misturado com
amor, determinação, respeito e amizade. Minhas experiências como estudante em
escolas regulares ajudaram-me a
compreender melhor meus alunos ‘diferentes’. Como eles, sempre fui uma pessoa
‘especial’ junto aos meus grupos de
convivência. (MANTOAN, 2001)
A formação dos educadores tem uma dimensão
coletiva que se traduz e se concretiza no desenvolvimento do trabalho por meio
da organização dos tempos e espaços compartilhados e definidos coletivamente. A
organização do trabalho pedagógico cria um movimento de tomada de decisões, de
estabelecimento de acordos, consensos e discensos acerca dos processos
constitutivos da ação educativa. Neste movimento, são explicitadas as diversas
dimensões da prática, as estratégias de ensino utilizadas, os entraves e formas
de superação das dificuldades identificadas.
no desenvolvimento do trabalho que deve ser definido e orientado numa
direção coletiva. Esta dinâmica permite diagnosticar avanços e dificuldades na implementação do projeto político-
pedagógico, expressão de uma construção coletiva.
As trajetórias individuais, os diferentes
estilos de vida, de gênero, de raça, as diferenças étnicas e as posições
sociais constituem um coletivo
heterogêneo, e essa convivência na diversidade produz efeitos nas relações de
trabalho e na elaboração do projeto político-pedagógico.
Em suma, rompe com a lógica de transmissão, assimilação e reprodução do
saber, contrapondo-se ao mito da especialização. Trata-se, pois, de uma nova
formação que,
busca aprimorar o que o professor já aprendeu
em sua formação inicial, ora fazendo-o tomar consciência de suas limitações, de
seus talentos e competências, ora suplementando esse saber pedagógico com
outros, mais específicos, como o sistema braile, as técnicas de comunicação e
de mobilidade alternativa/aumentativa, ora aperfeiçoando a sua maneira de
ensinar os conteúdos curriculares, ora levando-o a refletir sobre as áreas do
conhecimento, as tendências da sociedade contemporânea, ora fazendo-o provar de
tudo isso, ao aprender a trabalhar com as tecnologias da educação, com o
bilingüismo nas salas de aula para ouvintes e surdos. (MANTOAN, 2001.
As manifestações das diferentes dimensões
formadoras do ser humano articulam diversos saberes, experiências tanto dos
alunos quanto dos professores, currículo, produção do conhecimento e
diversidade cultural. Portanto, a formação
é um processo de construção de
identidades profissionais com base nas experiências pessoais, sociais e
culturais.
PARA
SABER MAIS . . .
BRASIL. Conselho Nacional de Educação, Câmara
de Educação Básica. Parecer n. 17, Diretrizes Nacionais para a
Educação Especial na Educação Básica. Relatores: Kuno Paulo Rhoden ; Sylvia
Figueiredo Gouvêa. Aprovado em: 03
set. 2001. Disponível em: <http://www.mec.gov.br/cne/default.shtm#Educacao
Especial>. Acesso em: 07 maio 2002.
Trata-se de um consolidado de recomendações e
orientações básicas para a organização do trabalho pedagógico no que se refere
às modalidades de inserção do alunado com necessidades educacionais especiais
no sistema regular de ensino. Propõe a organização de serviços de apoio
especializado e aponta estratégias de adaptações curriculares.
MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A
educação especial no Brasil: da exclusão à inclusão escolar. Disponível em
<http://www.lerparaver/bancodeescola>
Acesso em: 07 maio 2002.
Nesse texto, a autora faz uma revisão crítica da educação especial no
Brasil. Explicita as modalidades de inserção de alunos com necessidades
educacionais especiais no sistema escolar e enfatiza os princípios de uma
educação para todos.
MAGALHÃES, Maria da Conceição D. Inclusão:
agir, conhecer e viver. Disponível em
<http://www.lerparaver/bancodeescola>
Acesso em: 07 maio 2002.
Relato de experiência apresentado na oficina “O
Trabalho em Sala de Aula Envolvendo o Aluno com Deficiência Visual” Seminário
“O Educador e o Processo de Inclusão - Diagnóstico da Educação Inclusiva no
Ensino Fundamental em Belo Horizonte e Contagem” realizado nos dias 04 05 de
abril de 2002, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
RODRIGUES, Marli de Fátima; BRANDALISE, Mary
Ângela. Escolas especiais e visão
classista. Curitiba: UEPG 1998.
Por meio de um estudo de caso, as autoras
apresentam um panorama histórico no qual o destino dos pobres e desvalidos é
traçado na perspectiva de manutenção da ordem social. Mostram que a educação
compensatória compreende um conjunto de programas destinados a compensar
deficiências de saúde e de nutrição, familiares, emotivas, motoras,
lingüisticas etc. Analisam ainda a tendência de se criar um suporte
institucional à parte para dar conta dos excluídos, seja como um órgão
específico no aparelho governamental, seja como um programa especial dentro dos
órgãos existentes.