Escolas Especiais e Papel dos Educadores
"aquilo que não é conseqüencia de uma escolha não
pode
ser considerado como mérito ou fracasso. Diante de
uma condição que nos é imposta, é preciso encontrar
a atitude certa."
(M. Kundera)
Longe de promover a equalização social, a escola constitui
instrumento de reprodução da cultura dominante, de desigualdade e de
marginalização das classes populares. Nela, mecanismos de segregação e
de exclusão são amplamente praticados. A escola deveria ser para o
povo e, no entanto, volta-se contra o povo. O alunado pobre tem sido
massacrado pela dominação que produz e reproduz o fracasso escolar. E
pobre do alunado pobre que apresenta alguma deficiência física,
sensorial ou mental. Para esses alunos, a escolarização é conquista e
desafio permanentes em uma escola que espelha e espalha estigmas.
Que escola seria mais adequada para tais alunos? Quem são e como
são seus educadores? Onde e como se formam? Quais são os pressupostos e
paradigmas da educação especial? Ao enunciar questões desta ordem,
sem ousar esgotá-las, pretendo apenas fazer breves incursões sobre a
função das escolas especiais.
A QUEM SERVE A ESCOLA ESPECIAL?
Ao realizar uma consultoria, em 1984, junto à Secretaria de
Estado da Educação de Minas Gerais, pude avaliar a pertinência
de uma sala de recursos para alunos cegos e com visão subnormal do
curso secundário em uma escola pública. Os depoimentos dos alunos,
de seus familiares e de educadores confirmam a validade deste
suporte pedagógico. Esta experiência possibilitou a recapitulação
de minha trajetória de "aluna especial" confrontada com outras
experiências equivalentes, o que remetia às contingências da vida
social e educacional destes estudantes.
Convem ressaltar que as escolas especiais públicas ou privadas
com raras exceções oferecem somente o ensino fundamental. Os
alunos que pretenderem dar continuidade à escolarização devem
ingressar em escolas do ensino regular, submetendo-se à situação
contrastante entre a escola especial que é centrada em suas
necessidades e a escola regular, completamente centrada nas
necessidades dos alunos comuns. O hiato entre uma e outra situação
tende a ser atenuado por meio da implantação de salas de recursos e
de outros serviços de apoio.
Não raro, ouvimos dizer que a escola está despreparada para
receber alunos com deficiência física, sensorial ou mental. Via de
regra, é recomendado o encaminhamento destes alunos para a escola
especial ou é exigida uma avaliação autorizada de que estejam em
condições de acompanhar os demais. O mesmo acontece com educandos que
conseguiram ingressar na escola comum e não apresentam aproveitamento
compatível com a performance exigida. Aqueles alunos ficam estagnados
por vários anos sem perspectiva de aprovação e, geralmente, são
encaminhados para diagnóstico médico e psicológico com o objetivo de
comprovar suposta deficiência mental.
As dificuldades específicas de aprendizagem costumam ser
transferidas para a escola especial que é concebida como espécie
de "hábitat de excepcionais", lugar propício por reunir condições
apropriadas ao atendimento desse alunado: número reduzido de alunos
por turma, classes homogêneas, pessoal habilitado, currículo
adaptado, equipe interdisciplinar, recursos materiais e pedagógicos
adequados, serviços complementares etc.
A rigor, quem pode garantir que as escolas especiais apresentam
as condições apontadas e que o sucesso escolar depende destas
condições? Até que ponto o ensino segregado não serve à ocultação e
ao mascaramento dos problemas escolares? Estas escolas estariam imunes
ao sucateamento e à depalperação que têm afetado as escolas públicas
em geral? A qualidade de ensino nas escolas especiais não estaria
igualmente comprometida? Acreditar que estas escolas estejam
capacitadas para atender seu alunado não seria ilusório e defensivo?
Qual seria de fato seu alunado?
Para Mazzotta (1993),
"as classes especiais e escolas especializadas públicas ou
particulares não têm evidenciado os resultados de sua atuação
no sistema escolar. Por outro lado, o desconhecimento de seu
papel tem acarretado, muitas vezes, sua disfunção,
transformando-as em depositários de problemas de
aprendizagem detectados nas escolas, contribuindo para
solidificar mitos e slogans sobre suas desvantagens e
prejuízos. Além disso, tem-lhe sido imputada a função
ideológica de discriminação negativa e a dissimulação das
dificuldades impostas às crianças das classes populares.
Confundida com panacéia para o fracasso escolar produzido, a
educação especial tem sua validade posta em dúvida,
principalmente prejudicando aos deficientes mentais. Em tal
contexto, fica comprometida a realização do direito à educação
escolar. Quando muito, permanece a possibilidade de educação
como parte de programas de habilitação e reabilitação fora
do sistema escolar. O encaminhamento para superar tal situação
envolveria de um lado a clarificação do significado de
seu papel e do outro uma avaliação objetiva de seu
desempenho."
A educação especial não constitui sistema educacional autônomo,
consistindo em aparatos de recursos, instrumentos, serviços e
alternativas colocados à disposição dos educandos, independentemente da
faixa etária ou nível de ensino em que se encontrem, em situação
temporária ou definitiva de excepcionalidade. Para Mazzotta (1992),
"trata-se de recursos e processos especiais utilizados para
atender apropriadamente aos educandos com necessidades
educacionais especiais. Cabe destacar que educação especial
e excepcionalidade são condições necessariamente mediadas
pela educação comum. Em outras palavras, sem a mediação da
educação comum não há excepcionalidade nem educação especial.
Essa importante distinção nem sempre ocorre ou sequer é
percebida na definição de políticas públicas nesta área."
As escolas destinadas exclusivamente a alunos cegos parecem cumprir
seu papel tanto quanto a maioria das escolas de ensino regular e
mostram-se igualmente sujeitas à precariedade das condições de
ensino, talvez, distinguindo-se pela preponderância do assistencialismo.
Neste sentido, a função primordial de tornar-se efetivo espaço de
aprendizagem parece comprometida na maioria das escolas especiais,
principalmente, quando se trata de escolarização de alunos surdos ou
com deficiência mental e outras síndromes.
Após exaustiva peregrinação e convívio com nãos e senões, as
famílias destas crianças sentem alívio quando encontram aceitação e
lugar para o filho. O sentimento de gratidão por vezes inibe a
crítica, fazendo aflorar o de resignação diante da possibilidade do
mínimo de escolarização em um máximo de tempo. Não se pode negar o
fato de que estas instituições funcionem como espécie de abrigos ou
redutos segregados e de adestramento.
A educação especial tem sido objeto de concepções errôneas, falsos
pressupostos e lugar de marginalização. Nesta perspectiva, a síntese da
experiência de Porto Alegre (1989-92) trata do significado das escolas
especiais como espaço de exclusão e assistência social, o que pode ser
depreendido nesta passagem:
"Tanto quanto a classe especial em uma escola regular, a escola
especial é um espaço de exclusão social da mesma ordem,
guardando-se as proporções de um manicômio. Na ordem social,
parece intolerável conviver com os diferentes. Eles ferem
profundamente componentes narcísicos da maioria das pessoas.
O surgimento de associações de excepcionais, embora demarcante
do escancaramento de algo que estava recluso na família,
manifesta o desejo de compartilhar socialmente a contingência
da excepcionalidade. Entretanto, o surgimento das instituições
mantém ou pouco ultrapassa a estagnação de guarda ou
assistência por estarem suportadas pelo ônus da culpa de
ter gerado na família e na sociedade um indivíduo marcado pela
deficiência. Este circuito característico das armadilhas em
que se colocam os seres humanos não pode ou pouco pode ser
atravessado ou mediatizado pelo pensamento, juízo crítico
ou pela capacidade de elaborar e entender situações de
quando a aprendizagem é negada sistematicamente nos espaços das
escolas especiais, sobrepondo-se um mandato de não aprender."
(...) "Os profissionais de educação especial enfrentam o
desafio de ressignificar as pressões marcadas pela
excepcionalidade na direção da reconstrução da imagem da
instituição, redimensionando os papéis de professor/ensinante
e de aluno/aprendente. Neste sentido, as concepções sobre
educação especial precisam continuar sendo revistas e
incorporadas ao desafio de refletir sobre o lugar da escola
especial como reprodutora de estigmas sociais. O pressuposto
é pensar que o marco da deficiência que rotula o aluno impede
ou não que eu enfrente o desafio de desenvolver suas
possibilidades de aprender. Como desafiá-lo? A escola especial
pode ter o significado em si de que nada tem a ensinar para
aquele que nada tem a aprender. Nada tem a aprender como se
ensina porque se o aluno não tem nada a aprender, não é
preciso aprender a ensinar. Mas, o inovador é desfazer esse
equívoco e sair dessa imobilidade, pois quem pode ensinar o
que esses alunos podem aprender são os professores, descobrindo
como aprendem, possibilitando então, possíveis surpresas
a todos nós."
Outra característica das escolas especiais é a ênfase no enfoque
clínico que se sobrepõe ao pedagógico. Os profissionais destas escolas
estão apegados à condição orgânica como definidora de limitações e
dificuldades dos alunos com deficiência. Estes alunos costumam
submeter-se a um ritual de exames e intervenções terapêuticas que, se
não os retira da sala de aula, contribui para restringir as atividades
pedagógicas. Nem sempre se verifica - como seria desejável - o
intercâmbio produtivo entre profissionais da saúde e da educação e ainda
menos em termos de sistema interinstitucional. As escolas tornam-se
redutos isolados com pouca autonomia e poder de articulação. Esta
situação forja um modelo assistencial e educacional, cujos efeitos são
significativos na vida de seus beneficiários.
Neste sentido, o estudo de Porto Alegre é elucidativo:
"A descontinuidade dos segmentos de educação e de saúde é
marcada pelo fenômeno da medicalização e ambos constituem
elementos do fracasso escolar, criando-se uma relação perversa
na qual os problemas escolares passam a ser tratados do
ponto de vista patológico. Em se tratando de escola especial, essa
situação e a convivência quotidiana tendem a cristalizar-se,
institucionalizando-se a patologia da qual sua população
discente é portadora. Isso resulta em distanciamento do
compromisso social da escola, esvaziando-se do sentido
pedagógico e transformando-se em espaço eminentemente
clínico."
A concepção reducionista da escola especial como "locus" por
excelência da educação especial é resultante do confinamento e da
marginalização dos sujeitos considerados improdutivos e incapazes ou
"anormais" que representam ônus para a sociedade. Estes sujeitos
tornam-se destinatários do assistencialismo social, religioso e
filantrópico, excluídos do convívio natural com os "normais", pela
tutela familiar e institucional. Neste sentido, a escola especial
torna-se de fato apêndice de reprodução de estigmas e cumpre o duplo
papel de depositários dos problemas escolares e panacéia do fracasso
escolar produzido.
A modificação deste contexto depende da disponibilidade de mudança
de postura por parte dos profissionais da educação especial no sentido
de rever concepções e pressupostos, o que requer a apropriação de
novos paradigmas que concebem as pessoas com deficiência como sujeitos
desejantes inscritos no estatuto do direito e da cidadania. Para isto,
é preciso destituir a diferença como desigualdade e inferioridade e
compreender as deficiências como contingências do ser humano que o
tornam vulnerável diante do outro e que esse outro se torna vulnerável
diante da deficiência.
O enfrentamento destas questões não depende exclusivamente dos
educadores que não podem ser responsabilizados pelo malogro das
políticas públicas. Por outro lado, os educadores não devem eximir-se
do compromisso e defesa intransigente de princípios democráticos
que visam a garantia de escola pública de boa qualidade para todos
sem qualquer tipo de discriminação.
(*) a autora é pós-graduada em filosofia e psicologia educacional;
professora da rede municipal de educação de Belo Horizonte;
presidente do Conselho Municipal das Pessoas Portadoras de Deficiência
de Belo Horizonte
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MAZZOTTA M J S "Trabalho docente e formação do professor de educação
especial": Editora Pedagógica Universitária: São Paulo, 1993
_______________"O portador de deficiência e o direito à educação"
In: revista Insight-Psicoterapia nº 32: 25, Editora Lemos São Paulo,
1993
Hickel, N "Um olhar especial na educação: contribuição do construtivismo
para a educação especial" In: Construtivismo pós-piagetiano: org Ester
Pilar Grossi e Jussara Bordin Editora Vozes3ª edição
Sá, E. D. "A integração do aluno deficiente visual no curso secundário:
diagnóstico da situação" In: revista Integração, São Paulo, 1993
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