Dilemas e Perspectivas da Educação do Portador de Deficiência no Novo Milênio Marcos José da Silveira Mazzotta
RESUMO Na qualidade de cidadãos contemplados com a condição de participantes da passagem para um novo século, é fundamental que nos revigoremos para a grande empreitada que se inicia , no sentido de refletirmos, agirmos, caminharmos coletivamente, tanto quanto for possível, deixando para trás os ranços viscosos que possam retardar nossa busca de dias melhores. .. O que nos conduziu e tem nos movido ao trabalho docente e à realização de estudos sobre educação escolar é a crença na importância de nossa participação ativa na consolidação de uma escola de qualidade para todos os brasileiros, principalmente no que se refere ao ensino público fundamental. A possibilidade de estar nesse Forum Nacional de Educação consubstancia rica oportunidade de compartilharmos, conhecimentos, reflexões, experiências, com companheiros que acreditam e atuam na construção de uma escola que considere a diversidade dos alunos na edificação da cidadania e de uma sociedade melhor. É com tal entendimento que procuraremos trazer algumas considerações para nosso diálogo. Abordaremos alguns dilemas que envolvem as pessoas com deficiências em suas relações com a educação escolar, bem como algumas perspectivas para sua compreensão de modo a favorecer a melhoria das condições estruturais e conjunturais de sua realização. A prática de classificar por dicotomia a educação escolar, em regular ou comum e especial, bem como os educandos, em deficientes e não-deficientes, tem contribuído amplamente para a distorção e desqualificação de diversas alternativas educacionais surgidas no contexto brasileiro a partir de meados do século passado. Cabe aqui assinalar que desde seus primeiros registros na política educacional brasileira, particularmente a educação especial vem se modificando em decorrência das pressões de grupos socialmente organizados, sobretudo os de pais de crianças e jovens com alguma deficiência física, sensorial ou mental, além das condições de oferta e realização do ensino comum ou regular. Com grande freqüência interpretados equivocadamente, tanto a educação especial quanto o alunado ao qual se destina têm sido alvos preferenciais das justificativas de grande parte das mazelas e depreciações das situações de ensino-aprendizagem da escola comum, principalmente em nivel de ensino fundamental. Na maioria das vezes, tais circunstâncias decorrem mais dos mecanismos de discriminação negativa e preconceito do que de evidências das limitações e prejuízos que podem apresentar ou acarretar ao sistema escolar ou a um determinado estabelecimento de ensino público ou particular. Nesse mesmo sentido, é oportuno reiterar que “Educação Especial e excepcionalidade são condições necessariamente mediadas pela Educação Comum, ou seja, sem a mediação da educação comum não há excepcionalidade e nem educação especial”. (Mazzotta, 1993:139). Em estudos por nós desenvolvidos, registrados em outros trabalhos, constatamos que essa dicotomia tem sido explicitada na política educacional brasileira, colocando os elementos segmentados em relação de correspondência direta e necessária com cada uma das dimensões, consolidando uma “visão estática”; predominantemente na legislação, normas, planos e projetos específicos de educação especial. A partir da Constituição Federal de 1988 e do Plano Decenal de Educação para Todos, de 1993/2003, a relação do portador de deficiência com a educação escolar parece estar proposta de acordo com a postura a que denomino “visão dinâmica”. (Mazzotta, 1996). Na última década do século XX a expressão “alunos portadores de necessidades especiais” passou a constar nas publicações oficiais do Ministério da Educação (MEC) e de diversos autores brasileiros, chegando-se, muitas vezes, à sua banalização com o uso da sigla PNE. Os alunos são, assim, identificados simplesmente como PNEs e lhes é proposta a Educação Especial (EE) ou agora a versão “politicamente correta” Educação Inclusiva (EI). Tais expressões eufemísticas, além de inapropriadas, conferem sentido reificador aos educandos. “A simples mudança de termos, na legislação, nos planos educacionais e documentos oficiais, não tem sido acompanhada de qualquer alteração de significado. Exemplo disso são os termos “excepcional”, “aluno com problemas de conduta”, “aluno superdotado”, que foram substituídos, respectivamente, por “portador de necessidades especiais”, “aluno com condutas típicas” e “aluno com altas habilidades” Ao invés de representar avanço nas posições governamentais com relação à educação, comum e especial, do portador de deficiência, tais alterações contribuem, muitas vezes, para o esquecimento do sentido de “deficiência” e suas implicações individuais e sociais. Além disso, tendem a confundir o entendimento das diretrizes e normas traçadas, o que, por conseqüência, acarreta prejuízos à qualidade dos serviços prestados.(Mazzotta, 1996: 199).
No intuito de contribuir para o estudo de algumas implicações práticas da linguagem
empregada nas diretrizes, normas, planos e programas educacionais, focalizaremos a questão
dos alunos e das escolas com necessidades especiais.
Uma discussão sobre esse tema, poderá sugerir a presença de um tom meramente
provocativo, atrativo, dubitativo, imperativo, ou todos eles. Poderá suscitar tantas outras
interpretações, por se tratar da tentativa de discutir condições a serem exploradas e exaltadas
como NECESSIDADES; mais ainda quando tratadas como ESPECIAIS. Além disso,
estaremos expressando aqui, mais opiniões que constatações.
São, portanto, muito diversas as possibilidades de enfoque e discussão. Tentaremos a
exposição de algumas verdades e, evidentemente, não da verdade sobre necessidades de alunos
e escolas para o século vinte e um. Por certo, no trato dessa temática, reiteraremos algumas das
verdades que vimos esposando, construindo e defendendo
Mesmo porque, é bom lembrar, a principal característica do ser humano é a pluralidade e
não a igualdade ou a uniformidade. Cada um conhece e interpreta o mundo com olhares muito
particulares. Por outro lado, falar de século XXI, quando estamos despertando para ele, é tarefa
bastante temerária e incerta que pode até se configurar como meramente futurista .
Na abordagem de temas sociais e políticos, em particular a educação escolar, podem
existir dificuldades de sistematização e exposição decorrentes da própria complexidade da
linguagem empregada, configurando-se um erro de expressão e, em conseqüência, de
entendimento. Esse é, também, um risco que aqui corremos. No entanto, o risco que não
corremos é o da dissimulação das verdades defendidas.
Sabemos que verdades podem ser, em muitos casos, apresentadas como tal em resultado
da estratégia de manipulação da informação e do conhecimento, acabando por se transformar
em mentiras . Via de regra isso ocorre quando se tem em vista a conquista ou manutenção do
poder no espaço público, entendido aqui como espaço comum a todos.
Porque incluir tais considerações nessa exposição ? Talvez por nossa persistente crença
no papel social dos educadores e, ao mesmo tempo, por estarmos assistindo a numerosas
situações em que a estratégia da manipulação da informação e do conhecimento tenha se
tornado a regra nas relações sociais.
No campo da educação escolar, comum/especial/inclusiva, esse recurso tem sido
registrado com muita freqüência em manifestações de “educadores em geral” e de “educadores
profissionais”.
Em vista disso, como já nos ensinaram muitos filósofos e educadores, é preciso que
estejamos alertas ao fato de que as verdades podem ser distorcidas não por erro de entendimento
ou constatação, mas, por sua manipulação intencional ou “mentira”. Nesse sentido, é oportuno
lembrar que “essa mentira que supõe o conhecimento da verdade, tem por contrário a
veracidade, ao passo que a verdade tem por contrário o erro. Os dois conjuntos de contrários –
mentira/veracidade, erro/verdade – parecem então não terem relação”, como esclarece
Ricouer (1968, p.192).
No mundo contemporâneo, defrontamo-nos com uma grande diversidade de meios e
recursos para a manipulação da opinião individual ou de grupos, seja pelas novas técnicas de
comunicação somadas à incorporação das massas nos sistemas políticos, seja pelo registro da
história com deliberada exclusão dos fatos, ou, ainda, por tantas razões de outras ordens. Haja
vista a perversa padronização, de crenças e comportamentos, acelerada e exacerbada pela
globalização.
De que verdade, então, estaremos tratando? Procuraremos refletir e discutir, sobre
Alunos e Escolas com Necessidades Especiais no Século XXI, pelo caminho da
problematização e não por aquele já sabido ou rigidamente traçado pela experiência
passada, embora incorporando-a em nossa análise.
Como enunciado, vamos expor algumas de nossas crenças com o propósito de reiterar
convicções, colocar dúvidas, buscar caminhos, aproveitando essa oportunidade de convívio,
ainda que breve, com educadores e educandos, enfim, com cidadãos que estão empenhados e
querem a melhoria da qualidade de nossa educação escolar e de nossas vidas.
Nessa análise prospectiva, precisamos saber que o querer tem como objeto projetos, pois
a vontade transforma o desejo numa intenção, que decide o que vai ser,(...) o querer nos leva
para o futuro com todas as suas incertezas, geradoras das expectativas do medo e
esperança.(...), portanto, a vontade é uma faculdade voltada para o futuro, e o futuro, por
maior que seja a sua probabilidade, é sempre incerto.(Lafer,1979, 102).
Um ponto que nos parece relevante destacar é que alunos e escolas são assim
identificados por seus papéis sociais e não, propriamente, por sua configuração individual
separada ou isolada de uma contextualização social e cultural. Enquanto papéis sociais e
atores culturais, em suas relações recíprocas surgem necessidades e respostas condicionadas
pelo contorno dinâmico e atuante de seu meio ambiente. Esta faceta, que parece óbvia, tem sido
reiteradamente ignorada nas discussões e encaminhamentos desse tema, particularmente no que
se refere a educandos portadores de deficiências e que apresentem necessidades especiais.
Alunos e escolas são adjetivados de comuns ou especiais e em referência a uns e
outras são definidas necessidades comuns ou especiais a partir de critérios
arbitrariamente construídos por abstração, atendendo, muitas vezes, a deleites pessoais de
“experts” ou até mesmo de espertos. Alertemo-nos, também, para os grandes equívocos
que cometemos quando generalizamos nosso entendimento sobre uma situação particular.
Hoje, e provavelmente ainda por muitos anos do Século XXI, as expressões Alunos
Especiais e Escolas Especiais são empregadas com sentido genérico, via de regra, equivocado.
Ignora-se, nestes casos, que todo aluno é especial e toda escola é especial em sua singularidade,
em sua configuração natural ou física e histórico-social. Por outro lado, apresentam
necessidades e respostas comuns e especiais ou diferenciadas na defrontação dessas duas
dimensões, no meio físico e social.
Focalizando a educação de alunos com deficiências físicas, sensoriais ou mentais, é
importante salientar que, da mesma maneira que os demais alunos em uma determinada
realidade escolar, esses educandos apresentarão necessidades educacionais comuns e
especiais em relação ao que deles se espera e ao que lhes é oferecido na escola. Portanto,
somente nas situações concretas em que se encontram os alunos nas escolas é que poderemos
chegar a interpretar as necessidades educacionais escolares como comuns ou especiais.
Classificações apriorísticas de Alunos com necessidades especiais e Escolas com
necessidades especiais poderão conduzir a erros ou a “mentiras”, no sentido exposto
anteriormente. Para demandas educacionais escolares muito diferenciadas das que
freqüentemente se apresentam, são esperadas providências, medidas e recursos educacionais
escolares diferenciados ou especiais em relação àqueles que se encontram estruturados e
disponíveis para utilização.
É preciso, pois, colocar em evidência a importância de se analisar criteriosamente, em sua
totalidade, cada situação de ensino-aprendizagem concreta construida pelos alunos e escolas em
sua singularidade na sua realidade imediata, sem que se perca de vista a realidade social em que
se encontram. Assim, a despeito de se ter que conhecer as condições gerais ou globais das
situações de ensino-aprendizagem sob responsabilidade da instituição escolar, será mediante a
análise judiciosa de cada relação aluno-escola, em particular, que poderão ser identificadas
aquelas necessidades educacionais comuns e especiais a atender.
Na discussão das necessidades educacionais é fundamental não desconsiderar sua
interdependência com as demais necessidades humanas, tais como aquelas apontadas nos
clássicos estudos de Maslow, ainda que as mesmas não sejam interpretadas de forma
hierarquizada. Assim, necessidades fisiológicas, de segurança, de participação social, de estima
ou reconhecimento e as de auto-realização estão intricadas nas necessidades educacionais
comuns e especiais cuja satisfação inclui a atuação competente das escolas.
Evidentemente, tais formulações não são tão recentes entre nós e vêm sendo enfatizadas
e interpretadas pelos educadores brasileiros a partir da década de setenta. No entanto, cabe
assinalar como marco da ampliação do reconhecimento de sua importância, a colocação das
necessidades de aprendizagem como tema da Conferência Mundial, realizada em Jomtien,
Tailândia, em 1990, da qual resultou a aprovação da Declaração Mundial sobre Educação para
Todos e Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem.
Além de reconhecer a educação como direito fundamental de todos, as recomendações
internacionais contidas em tais documentos tiveram o mérito de explicitar o sentido das
necessidades básicas de aprendizagem. Segundo tal Declaração, essas necessidades
compreendem tanto os instrumentos essenciais para a aprendizagem, quanto os conteúdos
básicos necessários à sobrevivência e desenvolvimento para participação ativa na vida
social. Observa, também, que o dinamismo e a diversidade de tais necessidades para crianças,
jovens e adultos exige redefinição e ampliação contínuas da educação básica.
Em consonância com essas premissas, a Lei no. 9394/96 , que estabelece as Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), dispõe que a educação básica tem por finalidade
desenvolver o educando , assegurando-lhe a formação comum indispensável ao exercício
da cidadania e meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Para o nível do
ensino fundamental, obrigatório e gratuito nas escolas públicas, define o objetivo de formação
básica do cidadão, mediante: desenvolvimento da capacidade de aprendizagem tendo pleno
domínio da leitura, da escrita e do cálculo; a compreensão do ambiente natural e social, do
sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade;
desenvolvimento da capacidade de aprendizagem de conhecimentos, habilidades e formação de
atitudes e valores; bem como o fortalecimento dos vínculos de família, de solidariedade humana
e tolerância recíproca.
Essas disposições legais e normativas refletem uma concepção democrática da educação
escolar que não comporta qualquer tipo de exclusão, de crianças, jovens ou adultos, sob nenhum
pretexto. .Acreditamos que ainda por alguns anos nosso sistema escolar dependerá de auxílios e
serviços educacionais escolares especiais ou especializados para, de fato, atender com
competência alunos que apresentem necessidades educacionais especiais.
Dentro dos propósitos dessa exposição, convém reiterar que no amplo segmento de
pessoas com deficiência são numerosas aquelas que numa situação escolar não requerem
qualquer tipo de auxílio ou serviço de educação especial, podendo se beneficiar dos serviços
escolares comuns. Esta é a opção preferencial, inclusive prevista na Constituição Federal.
É oportuno, ainda, resgatar do “Relatório Jacques Delors”, elaborado sob os auspícios
da UNESCO pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, que as
aprendizagens necessárias a todo ser humano se estendem por toda a vida devendo, porisso, a
educação basear-se em quatro pilares: “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver
juntos e aprender a ser”. Em face disso, embora os sistemas escolares tendam a privilegiar o
acesso ao conhecimento, é fundamental que a educação seja concebida como um todo e que
nenhuma das potencialidades de cada indivíduo seja negligenciada.
Numa sociedade onde a crescente falta de respeito a si e ao outro se exterioriza em
discriminação negativa, competição, corrupção, marginalização e exclusão; onde a solidariedade,
tolerância, aceitação e cooperação têm sido atitudes raras, em suas variadas instâncias, e a ética
tem sido algo cada vez mais distante e desconhecido nas relações humanas, por certo muito se
espera da escola.
O fundamental é que ela se firme como espaço privilegiado das relações sociais para todos,
não ignorando, portanto, aqueles que apresentem necessidades educacionais especiais. Em outros
termos, acolhendo "crianças com deficiências e crianças bem dotadas, crianças que vivem nas ruas
e que trabalham, crianças de populações distantes ou nômades, crianças de minorias lingüísticas,
étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou zonas desfavorecidos ou marginalizados...",
conforme aponta a Declaração de Salamanca.(UNESCO, 1994, p.18).
No entanto, a efetivação da educação escolar para todos, mediante recursos tais como
educação especial, preferencialmente na rede regular de ensino, para os que a requeiram ou
educação inclusiva onde a diversidade de condições dos alunos possa ser competentemente
contemplada e atendida, demandará uma ação governamental e não-governamental marcada pela
sinergia, que algumas vezes parece ser até enunciada. Isto sem ignorar que a verdadeira inclusão
escolar e social implica, essencialmente, a vivência de sentimentos e atitudes de respeito ao outro
como cidadão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Notas de Rodapé Professor Associado/Livre-Docente da Universidade de São Paulo. Professor Titular do Programa de Pós- Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor em História e Filosofia da Educação pela USP. Ex-Diretor do Serviço de Educação Especial da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. A Lei n. 7853/89 utiliza os termos alunos portadores de deficiência e pessoas portadoras de deficiência. O Decreto n. 3298/99, que a regulamenta, define deficiência como "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano". Define pessoa portadora de deficiência como aquela que se enquadra nas categorias de: deficiente física, deficiente auditiva, deficiente visual, deficiente mental ou com múltipla deficiência. A LDB/96 emprega as expressões educandos portadores de necessidades especiais e educandos com necessidades especiais.
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