A Escola no Contexto da Vida
A história de minha família é típica da maioria da população
brasileira. Meus pais vieram do interior de Minas Gerais para
tentar a sorte na capital. Estabeleceram-se como comerciantes na
periferia de Belo Horizonte. nossa vida seguia seu curso de acordo
com apelos e demandas de sobrevivência. O trabalho sempre foi
um dos principais valores cultivados e a escola um ideal acalentado
por minha mãe que ousou desafiar a realidade, sonhando garantir
para os filhos o que lhe fora negado.
Somos oito irmãos dos quais cinco perderam gradualmente a visão.
Sempre necessitamos de recursos opticos e outras alternativas
quase sempre improvisadas ou inexistentes. Atualmente bengalas,
guias humanos, sistema Braille, gravadores, livros falados, ledores
e computadores fazem parte da parafernália indispensável em minha
vida diária.
Aprendi a ler e escrever fora da escola, graças à dedicação de
uma professora leiga que preparava cadernos de caligrafia, reforçando
com lápis preto margens e linhas do papel. E eu usava regua para
não extrapolar os limites demarcados. Na escola, cálculos e atividades
orais, produção de textos e memorização de conteúdos favoreciam
meu desempenho. Em compensação, padecia com tarefas que exigiam
coordenação motora, visualização, confecção de material, cartografia
e desenho.
Aprendi a lidar com palavras para nomear, descrever e interpretar
gráficos, figuras e imagens, graças ao constante exercício de
atenção, raciocínio, memória e abstração. Impulsionada pela
curiosidade e interesse, observava o ambiente para detectar pistas,
referências e indícios que possibilitavam interagir com diferentes
situações e produzir respostas esperadas. Certamente, estas
estratégias não foram assimiladas a partir de repertórios programados
com intenções e objetivos deliberados. Aprendi imersa na diversidade
do mundo feito de obstáculos e desafios quotidianos. Talvez essa
tenha sido a principal ou a mais importante lição que aprendi
dentro e fora da escola.
A perda gradativa da visão ganhava proporções e alterava o rítmo e
rotina da família, repercutindo na escola e em outros espaços da
comunidade. A assistência médica era precária, o que retardou o
diagnóstico da enfermidade, cujo prognóstico era sombrio e os
tratamentos eram desconhecidos ou experimentais. Aos poucos,
despesas com lentes e óculos sobrecarregavam o orçamento. Neste
contexto, diversos profissionais desaconselharam nossa permanência
na escola por acreditarem que se tratava de sacrifício, um esforço
inútil, pois no entender daqueles profissionais não poderíamos,
no futuro, exercer uma profissão.
Em casa, não fomos poupados e todos eram tratados da mesma forma
seja para brincar ou trabalhar. Aprendemos a compartilhar o mesmo
espaço, dividir responsabilidades e socializar roupas, livros,
objetos e outros pertences. Passei a ajudar minha mãe em um
mercadinho de frutas e legumes, onde aprendi a pesar, empacotar,
somar, dividir, calcular troco e féria. Efetuava mentalmente estas
operações, pois minha mãe tinha dificuldade com frações e contas.
Apesar das restrições, meu percurso escolar não foi interrompido.
Entrei para a universidade e passei a usufruir dos serviços de
saúde, estágios, monitorias e bolsas de trabalho. Paralelamente,
fazia o curso de francês com bolsa de estudo obtida pelo meu
notável desempenho no curso pré-vestibular. Comecei a dar aulas
particulares para crianças com dificuldades escolares e, depois,
aulas de francês para vestibulandos e postulantes de bolsa de
estudo na França. Além disso, fazia traduções livres e transcrições
de palestras e debates gravados. Estas atividades derivavam de
meu vínculo com a universidade.
Após a formatura, vivi um ciclo marcado pela discriminação no mundo
do trabalho. Consegui um emprego de telefonista com equipamento
adaptado para pessoas cegas e travei batalhas para realizar
concursos públicos e efetivar minha admissão que fora interseptada
pelo setor médico. Passei por maratonas de cirurgias e tratamentos
na tentativa frustrada de impedir a cegueira. Finalmente, depois de
muita batalha, concentrei minhas atividades profissionais na rede
municipal de educação de Belo Horizonte.
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