A Cegueira Adquirida e a Ilusão da Cura
Elizabet Dias de Sá*
DIANTE DA CATÁSTROFE
"Quero minhas letras, meus olhos... Nada de fazer furinhos no
papel (1). O mundo sem visão não tem beleza. Os amigos
sumiram... Sem ver, não tem jeito de viver. O cego não pode
fazer nada e ninguém pode ajudá-lo."
O Sr X, professor de inglês, ficou cego aos 50 anos, vitimado
por uma brincadeira de seus alunos, quando lançavam, ao ar,objetos
miúdos e pontiagudos , atingindo-o nos olhos. Após prolongados
períodos de licença médica, aposentaram-no por invalidez. Não havia
mais lugar para ele na escola, onde diziam que seu hábitat natural
seria uma instituição para cegos.
Sentado de cabeça baixa, encolhido e sem me olhar, pedi ao Sr X para
se recordar do modo como se colocava diante das pessoas quando
enxergava. Ajudei-o, modificando sua posição. Notei seu temor ao
desequilíbrio e à falta de referências. Sugeri que recordasse sua
marcha. Ele estava tenso e com medo, seus movimentos eram contidos.
Mostrei como aquela postura atraía a piedade das pessoas. Deixei-o
conhecer o ambiente, localizando as portas, janelas, o mobiliário e os
objetos. Ele hesitava com receio de esbarrar, tropeçar e derrubar
coisas. Eu o encorajava, fazendo-o apalpar cada objeto até obter as
informações que o permitiam identificá-lo.
Entre blasfêmias e lamentos, o Sr X fazia perguntas e comentários:
"Será que não escaparei da bengala? O Mata Machado (2) nunca
usou bengala e não gostava de ser cego."
O Sr X apresentou-se a mim acompanhado por uma mulher. Ela repetia
que seu parceiro estava muito nervoso e precisando de ajuda, sem a qual
poderia cometer suicídio. Confidenciou-me que ele sonhava com a
possibilidade de uma cirurgia nos Estados Unidos, não sabendo que seu
estado era irremediável. Ela sempre se valia da ausência dele para
falar comigo, manifestando seu temor de que ele perdesse o controle,
cometendo uma loucura. Conhecera-o cego e estava disposta a fazer
tudo por ele.
O Sr X se relacionava com pessoas que se espantavam com sua
cegueira e não se mostravam preparadas para ajudá-lo. A família não o
considerava uma pessoa "credenciada"para a cegueira porque ele não se
conformava com seu destino, estando apegado às coisas materiais e não
abstratas. Suas queixas, reclamações e inferências eram perturbadoras
e eram como se o acusassem de ser cego. Ele se sentia culpado e ofendido
com a estupidez daqueles que possuíam visão. Sentia raiva de quem o
pretendia consolar recomendando fé em Deus ou a busca em Cristo,
enquanto ele preferia ir em busca de seus olhos ou meter-se dentro do
quarto e esperar a morte. Para ele, a única coisa que poderia salvá-lo
seria a recuperação de sua visão.
"Sempre usei a visão para as coisas boas e não para as más.
Nunca matei ninguém para merecer isso. Não quero dar trabalho.
É melhor sair por aí, dando cabeçadas do que ficar parasitando
os outros."
O Sr X comparava-se a um cachorro acorrentado que só recebe água e
comida, choramingando diante dos maus tratos. Sentia vergonha de
ser cego e percebia que as pessoas não sabiam lidar com a deficiência.
Convivia com seu mundo desmoronado, em ruínas e, inconformado, não
suportava tanta agonia, estando aprisionado ao corpo vidente. Não
admitia a humilhação da cegueira e desejava recuperar sua visão a
qualquer custo. Para isto, recorreu a muitos médicos, tentando
dissipar a dúvida que o atormentava. Ouviu deles que onde há luz, há
esperança e que devia confiar nos avanços da medicina moderna.
Ele se irritava com a falta de informações corretas e de dados
precisos, pois conhecia a verdade sobre sua nova condição e queria
ouvir a confirmação do que já sabia. Com o tempo, ele não precisou
de mais ninguém para compreender que era um homem cego.
ELABORANDO O LUTO
Não raro, ouvimos dizer que alguém virou outra pessoa depois que
ficou cego. Em parte, isso é verdade, pois a cegueira é a ruptura
repentina e radical com todas as referências visuais, o que desorganiza
e despersonaliza. A cegueira significa muitas e grandes perdas,
significa mudança de vida.
Thomas J. Carol (1968)(3) escreveu um livro que narra com minúcias a
situação da pessoa que adquiriu a cegueira em dado momento de sua
existência. Para ele,
"a perda da visão é morrer. É o fim de uma certa maneira de
viver que era parte do homem, ao término de métodos adquiridos,
realizações e de perdas de relações humanas estabelecidas e
inerentes ao meio ambiente. A morte pela cegueira destrói um
padrão inteiro de existência. A pessoa dotada de visão está
morta. A cega que surge poderá tornar-se a mesma pessoa somente
se estiver disposta a suportar a dor da perda da visão que é
múltipla. Elas se sobrepõem umas às outras. Qualquer uma delas
é por si mesma grave. Juntas formam as múltiplas limitações que é
a cegueira. Cada perda inclui um adeus doloroso. Mas,
com a morte do homem de visão, o homem cego nascerá e sua vida
poderá ser boa."
Não se trata de aceitar ou não a cegueira. Ela é uma fatalidade. Se
nos fosse oferecida, nós a recusaríamos. Ninguém gosta de ser cego.
Diante de tão implacável evidência, a pessoa poderá viver confinada em
um mundo fantasmagórico ou arriscar-se a ser feliz. Seu novo destino
sofrerá todas as interferências de sua vida passada e presente,
envolvendo padrões familiares, culturais, econômicos, políticos e
sociais. Poderá viver sempre enlutado ou libertar-se para a vida. Para
isto, precisa interrogar-se sobre seus sentimentos de recusa à
cegueira, compreender suas emoções para superar a dor e o luto.
As atitudes e comportamentos das pessoas que o cercam podem ou não
ajudá-lo porque o enfrentamento emocional da perda é penoso para todos.
A dor não deve ser consolada com falsas esperanças, promessa de cura ou
de milagres. De nada adiantaria oferecer ilusão a uma pessoa cega. Cedo
ou tarde ela descobrirá a verdade. O fato de estar indefesa ou
vulnerável não deve servir para estimular a infantilização da pessoa
cega que experimenta sentimentos profundos e emoções confusas com
horror, pânico, comiseração, culpa e repúdio à cegueira. A pessoa
entra em confronto direto com sua vida racional e afetiva.
A elaboração da perda consiste em descobrir e depurar todos os
sentimentos e emoções contidos no luto. Consiste em afirmar a falta,
compreender a dependência e reconhecer as proporções reais e não
imaginárias dos limites. Somente assim, a pessoa poderá ressurgir
vitoriosa da morte parcial que é a cegueira e Aprenderá a separar-se do
olhar morto, descobrindo a vitalidade de seu corpo. Ela encontrará
outras maneiras de perceber e relacionar-se. Para isto, precisa vencer
o medo, dando lugar à coragem. O cego precisa ser corajoso. Não é
fácil, é necessário, pois a vida é desafiadora.
Fonte: Vivência, revista da Fundação Catarinense de Educação Especial:
nº 8, 1990 p. 31.
(*)Elizabet Dias de Sá é psicóloga, presidente do Conselho Municipal de
Pessoas Portadoras de Deficiência e trabalha na Secretaria Municipal
de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte, Minas Gerais.
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(1)referência ao sistema de escrita braille
(2) alusão ao escritor mineiro Aires da Mata Machado
(3) "A cegueira, o que ela é, o que ela faz e como viver com ela":
trad. Jurema Lúcia Venturine e Ana Amélia da Silva: Fundação para o
Livro do Cego no Brasil, São Paulo, 1968
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