Elizabet Dias de Sá*
Ao ser convidada para falar sobre disciplina e limites com técnicos e
MãEs-Sociais que atuam em Casas-Lares no Estado de Minas Gerais,
procurei conhecer os aspectos que me pareceram essenciais para
compreender a natureza deste projeto e situar a demanda, manifesta de
forma ampla e vaga. Neste sentido, as expectativas extrapolavam a mera
demarcação de procedimentos, posturas, atitudes ou recomendações
instituídas na forma de leis, contratos ou regulamentos. Percebi
que se tratava da abordagem de conflitos vivenciados pelas Mães
Sociais no desempenho de suas funções, particularmente, no que se
refere à colocação de limites, à disciplina e às normas de convivência
no espaço das relações institucionais e interpessoais. Aos poucos,
foram emergindo apelos presentes no convívio diário de um grupo
socialmente constituído à imagem e semelhança de um núcleo familiar.
O enquadramento de uma Casa-Lar, a definição de hierarquias,
competências, atribuições e a organização do trabalho estão sujeitos a
um conjunto de requisitos e dispositivos que delimitam as ações e
dimensões do projeto em desenvolvimento. As Mães-Sociais assim como
os técnicos deveriam conhecer o ideário do projeto em seus aspectos
legais, ideológicos, filosóficos e sociais, tendo em vista
dimensionar os limites e possibilidades de sua atuação.
a Mãe-Social pode ser definida como uma pessoa da comunidade
supostamente qualificada para cuidar de crianças e jovens residentes
em uma Casa-Lar. Esta designação me remeteu à especulação dos termos
empregados e suas possíveis implicações no contexto do trabalho
realizado no quotidiano desta coletividade. A palavra CASA
sugere a idéia de moradia, vivenda, habitação, domicílio, residência,
abrigo, espaço de proteção e conforto entre outras. O atributo LAR
tem um sentido de Instituição familiar, espaço doméstico, "locus" de
parentesco e intimidade. A proposição CASA-LAR reflete o
ideal de abrigo temporário para acolhimento de crianças e jovens
em situação de risco, abandono ou privação econômica, com a intenção
de fortalecer vínculos afetivos e humanizadores das relações
institucionais.
A Mãe-Social figura como mãe substituta, aquela que cuida,
protege, guarda, zela pelo bem-estar, integridade física e moral de
seus pupilos. Diferencia-se da mãe biológica ou adotiva por exercer
uma atividade remunerada, a partir de parâmetros preestabelecidos,
com sentido de tutela e assistência social. Assume uma simultaneidade
de atribuíções como autoridade, pessoa de referência, coordenadora,
administradora e educadora. Ao mesmo tempo, pratica uma espécie de
maternagem e, talvez, cumpra também a função paterna pelas
circunstâncias de seu trabalho. Sendo assim, alguns impasses e
conflitos estão sendo detectados de forma recorrente na dinâmica
destes núcleos sociais.
A mãe-social depara com a diversidade própria de um grupo heterogêneo
de crianças e jovens com diferentes idades, histórias e vivências;
convive com vários estilos de comportamento, atitudes, emoções e
reações: atividade, passividade, rebeldia, apatia, carência etc.
Lida com múltiplas demandas e torna-se alvo de afeto,
desafeto, expressão de desejo, agressão e hostilidade. Interage com
todos e cada um; uns e outros dirigem-se a ela com várias
expectativas. Sua atenção volta-se também para as trocas
entre os pares no interior do grupo. Ela precisa responder se pode ou
não pode, se deve ou não deve e aprender a dizer sim ou não.
Neste contexto, a mãe-social atua em um ambiente vulnerável e complexo,
sujeito a constantes tensões, ansiedades e dilemas. O fato de lidar
com privações e carências pode mobilizar emoções e sentimentos
paradoxais, tornando-se difícil impor limites e regras. A rotina desta
mãe não se caracteriza pela monotonia e desafia seus esforços e
capacidade de discernimento. As atribuições, demandas e expectativas
a ela dirigidas colocam em cheque sua identidade profissional. Quais
são ou deveriam ser as condutas esperadas ou procedimentos
recomendáveis no exercício diário de suas atividades em uma Casa-Lar?
Quais são os princípios e valores a serem assegurados no regulamento
da disciplina? E qual é a concepção de disciplina a ser praticada?
Estas indagações introduzem um importante exercício de reflexão
sobre relações de poder, hierarquias, definição de competências,
formação de hábitos, mudanças atitudinais etc. Além disso, podem
evidenciar a necessidade de "desconstruir" algumas polaridades e
concepções errôneas sobre direito e concessão, medida de proteção e
protecionismo, assistência e assistencialismo, autoritarismo e
permissividade.
A noção de limites costuma ser concebida como restrição, impedimento
ou falta, em oposição aos excessos ou abusos cometidos
a partir de referenciais objetivos e subjetivos. Geralmente, pais
e educadores agem de forma extremamente permissiva, tomados pelo
receio de parecerem autoritários. A permissividade decorre da
desorientação, insegurança e falta de firmeza, tendo como efeito a
tirania e o jugo das crianças e dos jovens sobre os adultos. Para
evitar cometer erros, praticar métodos punitivos, uso de violência
e chantagens, os adultos costumam delegar à criança o poder de
definir regras e impor limites. Temem agir com rigidez ou
intransigência e acabam por instaurar o anarquismo, perdendo o
controle da situação. A criança necessita de modelos para testar
limites, comprovar suas experiências, sentir-se protegida e segura.
A imposição de limites não deve ser interpretada
negativamente, pois o limite é um parâmetro necessário para a criança
aprender a decidir sobre o que deve ou não fazer diante de uma
situação, diferenciar direitos e deveres, posicionar-se em relação
aos interesses, desejos e escolhas conflitantes. Contudo, não caberá à
criança decidir sempre sobre o que será melhor para ela, em função de
suas motivações e desejos pessoais. Decisões dessa natureza exigem
um conhecimento e maturidade que ela ainda não tem. Seus desejos
devem ser respeitados e contemplados sem exageros. O exercício
da autoridade é uma condição necessária à formação de identidades.
Mas, é preciso distinguir autoridade de autoritarismo.
A ausência de limites pode levar ao egocentrismo, à incapacidade de
diálogo e cooperação. Limites e regras fazem parte do convívio
familiar e social como reguladores de conduta dos membros de uma
sociedade. As normas refletem valores e estilos de conduta.
Nem sempre, devem ser definidas ou eleitas espontaneamente pelas
crianças, Devendo ser imperativas e não negociadas. Da mesma forma, não
devem ser impostas arbitrariamente pelos adultos. Por isto, não se trata
da aplicação dos enunciados de um "manual de boas maneiras" ou da
experimentação de um receituário de técnicas sobre a arte de
conviver em sociedade.
Belo Horizonte, 29 de outubro de 1998
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