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CANHOTO ENFRENTA O "SER GAUCHE NA VIDA" - Alexandra Ozório de Almeida


CANHOTO ENFRENTA O "SER GAUCHE NA VIDA" Alexandra Ozório de Almeida

O que há em comum entre uma tesoura, uma régua e um abridor de latas? Se hesitou na resposta, é provável que você seja um destro e, como tal, não perceba que o mundo não é feito para os canhotos. Os três objetos representam a hegemonia daqueles que têm mais habilidade com a mão direita. Ao tentar manuseá-los, o canhoto apenas reforça a imagem de desastrado, a mais comum das associações negativas que costuma provocar.

Caio Esteves/Folha Imagem [] Canhoto abre lata com utensílio para destros

Ser canhoto é ter de se adaptar a uma realidade espelhada, que se apresenta ao avesso, impondo um mundo invertido, ao contrário daquele que seu cérebro considera natural. Não que essa adaptação seja sempre difícil. Até entre os canhotos, a maioria, resignada, talvez não se dê conta do esforço.
Seria exagero afirmar que o canhoto é estigmatizado como no tempo de nossos avós. Mas os resquícios de uma época em que essa minoria não tinha vez ainda estão presentes, para muito além daqueles três prosaicos utensílios. Sim, há uma discriminação contra o canhoto, ainda que involuntária —e foi para chamar a atenção contra essa atitude que se comemorou, em 13 de agosto, o Dia Internacional do Canhoto. A expressão "internacional" mais indica um desejo do que descreve um fato. No Brasil, por exemplo, só o mais militante dos canhotos terá se lembrado da data. O Dia Internacional dos Canhotos (comemorado com feiras de produtos para esse nicho de mercado e por competições esportivas em que os destros ficaram de fora) é mais uma invenção dos britânicos em prol da "categoria". A mais conhecida delas foi estabelecer que os carros circulam do lado esquerdo da rua. Essa iniciativa, como se sabe, não pegou na maior parte do mundo. Nem teve como objetivo facilitar a vida dos canhotos. Acredita-se que o hábito tenha tido origem no período medieval: cavaleiros seguravam o escudo com a mão esquerda, para proteger o coração, e a lança com a direita, fazendo com que eles trafegassem do lado esquerdo das estradas, em caso de ataques. De qualquer maneira, é nesse Reino Unido campeão dos direitos das minorias que prospera um incipiente movimento dos canhotos. É provável, portanto, que não por acaso o país tenha sido o berço de um trabalho que mapeia os preconceitos contra canhotos. Trata-se do livro de Chris McManus, professor de psicologia da University College de Londres. Lançado em março, o estudo resulta de 30 anos de pesquisas sobre o uso da mão esquerda no decorrer da história em diferentes culturas. "Mão Direita, Mão Esquerda", a ser lançado em setembro nos EUA, recebeu resenhas positivas da mídia especializada, como a revista científica "Nature", uma das mais prestigiadas do mundo, e leiga, tendo sido elogiado pelos jornais "The Times", "Financial Times" e "The Spectator", entre outros. O autor mostra que o lado esquerdo é sempre visto de forma negativa. "Há indícios de preconceito contra os canhotos desde que os homens têm usado a linguagem, há 100 mil anos ou mais", disse McManus à Folha. A discriminação, na verdade, começa na própria língua, qualquer que seja ela. Em português, canhoto também tem o sentido de inábil, desajeitado. Destro, ao contrário, significa aquele que é dotado de destreza, hábil, ágil, direito, correto. Em francês, o adjetivo canhoto ("gauche") é sinônimo de inepto, acanhado, sem refinamento. "Vai, Carlos, ser "gauche' na vida", escreveu Drummond de Andrade, um destro com alma canhota. "Sinistro", em italiano, é algo de mau agouro, fúnebre, ameaçador. O termo inglês ("left-handed") é descritivo, neutro, mas levantamento citado por McManus aponta mais de 80 sinônimos pejorativos na língua. Expressões populares atribuem juízo de valor aos dois hemisférios do corpo: após uma sequência de reveses, diz-se que o desafortunado acordou com o pé esquerdo; no Réveillon, desejamos ao próximo entrar no ano com o pé direito, e assim por diante. A etiqueta também não ajuda. Cumprimenta-se com a mão direita e, à mesa, corta-se o alimento com a faca na mão direita, o que pode levar a um "choque de asas" entre o canhoto e o destro ao lado. Até a religião oferece chancela de peso ao preconceito. Segundo a Bíblia, Jesus Cristo se sentava do lado direito de Deus. Quanto ao Diabo, não apenas seria canhoto, como batizava os seguidores com a mão esquerda, segundo idéia difundida no século 17. Na política, a distinção é fortíssima. Na monarquia francesa, os nobres se sentavam à direita do rei e o Terceiro Estado —burgueses e outros, que acabaram derrubando o regime— ficavam à esquerda. Comunistas, anarquistas e outros integrantes da esquerda política ainda são associados à quebra da ordem vigente, cuja manutenção é defendida pelos "conservadores", a direita. A questão não se restringe à cultura e à política ocidental. No Alcorão, no dia do Juízo Final, aqueles que carregam os livros na mão esquerda sinalizam os que não foram bem-aventurados. O capítulo 56 do livro sagrado muçulmano descreve o destino de cada grupo. Enquanto aos bem-aventurados está reservado o melhor —tronos, água corrente, árvores frondosas— os outros são recebidos com água fervente, ventos escaldantes, uma sombra de fumaça negra. "Os ditos do profeta determinam as ações de cada mão", explica o xeque Armando Hussein Saleh, da Mesquita Brasil. "A mão direita é a das boas ações, como se alimentar, cumprimentar as pessoas. A mão esquerda é usada por Satanás e os demônios, em seus atos, por isso usamos a mão direita para contrariar aquele que é nosso inimigo nº 1." À mão esquerda estão reservadas as tarefas impuras, como a higienização, poupando a direita para as ações puras. Essa noção ainda é observada em Estados islâmicos mais conservadores, como os do Golfo Pérsico. Até hoje não se sabe bem o que leva uma pessoa a ter mais habilidade com uma das mãos. Acredita-se que haja influência genética, mas não se sabe qual ou quais genes estariam ligados a essa característica. Também não se sabe qual a porcentagem da população que terá esse traço. Cerca de 10% das pessoas são canhotas, mas, devido à discriminação, essa proporção era de 3% no início do século 20. "A influência ambiental é decisiva em eventualmente converter um canhoto em falso destro ou em definir um indivíduo sem determinação inata óbvia na expressão de uso de membros", afirma Luiz Eugênio de Mello, professor de neurofisiologia da Universidade Federal de São Paulo. Ser classificado canhoto ou destro não é tão simples quanto parece. Ninguém é 100% um ou outro. "Considera-se canhota a pessoa que tem o domínio da habilidade motora manual, do pé ou do olho esquerdo", explica o neurologista Luiz Celso Vilanova, chefe do setor de neurologia infantil da Unifesp. "Mas a concordância não é obrigatória", acrescenta Mello. Isto é, a mesma pessoa pode ter o pé direito e a mão esquerda dominantes, por exemplo. Por uma convenção social, se valoriza mais a predominância manual do que as outras duas. Do ponto de vista neurológico, destros têm o domínio do hemisfério cerebral esquerdo. Curiosamente, nem todos os canhotos são o oposto, apresentando o domínio do hemisfério direito. Essa questão da dominância está na raiz de um dos muitos mitos sobre os canhotos: o de que seriam mais artísticos do que os destros, que, por sua vez, teriam maior desenvoltura ao lidar com códigos lógicos, situados do lado esquerdo do cérebro. Uma área em que canhotos podem comemorar vantagem é a esportiva, pois os jogadores estão mais acostumados a enfrentar adversários destros. Estatisticamente, mostra McManus, esportistas canhotos bem-sucedidos existem em proporção maior do que na população geral. As mais variadas teorias tentam entender o canhotismo. Há não tanto tempo, definia-se que o "normal" era ser manidestro e que o canhotismo era resultado de um nascimento traumático. O resultado é que fazia-se de tudo —e alguns ainda fazem— para tirar a criança do "mau caminho". Quando o bebê começava a pegar objetos com a mão esquerda, batia-se naquela mão e o objeto era colocado na mão direita. Divulgação [] Capa do livro "Right Hand, Left Hand" Professores também têm um histórico de repressão ao uso da mão esquerda. A criança canhota era obrigada a aprender a escrever com a mão direita. As canhotas autorizadas a usar a mão preferida eram corrigidas por escrever "torto", com o caderno inclinado à direita. Material escolar é um problema para canhotos: a espiral atrapalha o punho, réguas têm a numeração da esquerda para direita (para canhotos o mais fácil é traçar uma linha no sentido contrário) e as tesouras impedem que vejam a linha sendo cortada. Enquanto em países como o Reino Unido é possível encontrar produtos feitos para canhotos, no Brasil esses objetos são praticamente inexistentes. Segundo Valmor Luiz Marchi, gerente industrial do grupo Eberle-Mundial, que produz facas, tesouras e alicates para canhotos, vendidos no Brasil e também exportados, o mercado consumidor não é proporcional ao número de canhotos. "Mesmo o mercado americano desses produtos varia de 3% a 5% da população, sendo que os canhotos representam mais ou menos 10% do total", afirma. Enfrentar essa série de pequenos desafios produz efeitos diversos nos integrantes dessa minoria silenciosa. Em um dos poucos sites brasileiros sobre o tema, o "livro de assinaturas" traz comentários de canhotos que se vangloriam da condição ou se envergonham da "deficiência". As causas e as consequências associadas ao uso preferencial de uma das mãos têm sido objeto de vários estudos nos últimos 20 anos. Eles estão inseridos na discussão a respeito de lateralidade: a idéia de uma linha imaginária que divide tudo ao meio e um lado é diferente ou predomina sobre o outro. Há até, no Reino Unido, uma revista sobre o tema: "Lateralidade -Assimetrias do Corpo, do Cérebro e da Cognição". Um dos editores é o próprio Chris McManus. O subtítulo do livro de McManus dá uma idéia mais precisa sobre o ponto onde o autor quer chegar: "As Origens da Assimetria: do Big Bang à Mente Humana". Sua intenção é abraçar todas as áreas que promovem estudos sobre o tema: psicologia, biologia, química e neurociência, em uma tentativa de unificá-las, mesmo que de maneira informal —o livro é muito mais informativo do que teórico. Os capítulos do livro começam com perguntas: Por que existem canhotos e destros? Por que os espelhos refletem imagens invertidas no sentido esquerda-direita e não norte-sul? Por que nosso coração está do lado esquerdo do corpo? Segundo o autor, a lateralidade está inserida em um contexto maior, o de assimetria. McManus discute as questões históricas e filosóficas a respeito da existência da assimetria, especificamente a premissa de que esquerda e direita podem ser conceitos relativos ou absolutos. A idéia é que essa lateralidade está nas menores formas de vida (as moléculas de DNA são "canhotas", isto é, sua espiral gira para o lado esquerdo), passando pela lateralidade humana (a preferência pelo uso de uma das mãos), até a escala macro, como a dispersão irregular das galáxias no espaço. Se traçarmos uma linha dividindo o corpo, vemos duas partes simétricas. Mas a realidade é que o homem é surpreendentemente assimétrico: a distribuição de órgãos é irregular, o sistema vascular é distribuído de forma irregular pelo corpo, os dois hemisférios do cérebro têm tarefas bastante distintas e usamos de forma bastante desigual as nossas mãos. "Nosso corpo tem uma clara assimetria, ainda que por vezes pareça haver um predomínio da simetria. Em geral, o lado esquerdo do nosso sistema nervoso, que controla o lado direito do nosso corpo, é anatomicamente e funcionalmente assimétrico em relação ao lado direito", afirma Mello. Fonte: Folha de São Paulo - SINAPSE - 27/08/2002

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