O que há em comum entre uma tesoura, uma régua e um abridor de latas? Se hesitou na resposta, é provável que você seja um destro e, como tal, não perceba que o mundo não é feito para os canhotos. Os três objetos representam a hegemonia daqueles que têm mais habilidade com a mão direita. Ao tentar manuseá-los, o canhoto apenas reforça a imagem de desastrado, a mais comum das associações negativas que costuma provocar.
Caio Esteves/Folha Imagem [] Canhoto abre lata com utensílio para
destros
Ser canhoto é ter de se adaptar a uma realidade espelhada, que se
apresenta ao avesso, impondo um mundo invertido, ao contrário daquele
que seu cérebro considera natural. Não que essa adaptação seja sempre
difícil. Até entre os canhotos, a maioria, resignada, talvez não se dê
conta do esforço.
Seria exagero afirmar que o canhoto é estigmatizado como no tempo de
nossos avós. Mas os resquícios de uma época em que essa minoria não
tinha vez ainda estão presentes, para muito além daqueles três prosaicos
utensílios.
Sim, há uma discriminação contra o canhoto, ainda que involuntária
—e foi para chamar a atenção contra essa atitude que se comemorou,
em 13 de agosto, o Dia Internacional do Canhoto.
A expressão "internacional" mais indica um desejo do que descreve um
fato. No Brasil, por exemplo, só o mais militante dos canhotos terá se
lembrado da data. O Dia Internacional dos Canhotos (comemorado com
feiras de produtos para esse nicho de mercado e por competições
esportivas em que os destros ficaram de fora) é mais uma invenção dos
britânicos em prol da "categoria". A mais conhecida delas foi
estabelecer que os carros circulam do lado esquerdo da rua.
Essa iniciativa, como se sabe, não pegou na maior parte do mundo. Nem
teve como objetivo facilitar a vida dos canhotos. Acredita-se que o
hábito tenha tido origem no período medieval: cavaleiros seguravam o
escudo com a mão esquerda, para proteger o coração, e a lança com a
direita, fazendo com que eles trafegassem do lado esquerdo das estradas,
em caso de ataques.
De qualquer maneira, é nesse Reino Unido campeão dos direitos das
minorias que prospera um incipiente movimento dos canhotos.
É provável, portanto, que não por acaso o país tenha sido o berço de um
trabalho que mapeia os preconceitos contra canhotos. Trata-se do livro
de Chris McManus, professor de psicologia da University College de
Londres. Lançado em março, o estudo resulta de 30 anos de pesquisas
sobre o uso da mão esquerda no decorrer da história em diferentes
culturas.
"Mão Direita, Mão Esquerda", a ser lançado em setembro nos EUA, recebeu
resenhas positivas da mídia especializada, como a revista científica
"Nature", uma das mais prestigiadas do mundo, e leiga, tendo sido
elogiado pelos jornais "The Times", "Financial Times" e "The Spectator",
entre outros.
O autor mostra que o lado esquerdo é sempre visto de forma negativa. "Há
indícios de preconceito contra os canhotos desde que os homens têm usado
a linguagem, há 100 mil anos ou mais", disse McManus à Folha. A
discriminação, na verdade, começa na própria língua, qualquer que seja
ela.
Em português, canhoto também tem o sentido de inábil, desajeitado.
Destro, ao contrário, significa aquele que é dotado de destreza, hábil,
ágil, direito, correto. Em francês, o adjetivo canhoto ("gauche") é
sinônimo de inepto, acanhado, sem refinamento. "Vai, Carlos, ser
"gauche' na vida", escreveu Drummond de Andrade, um destro com alma
canhota. "Sinistro", em italiano, é algo de mau agouro, fúnebre,
ameaçador. O termo inglês ("left-handed") é descritivo, neutro, mas
levantamento citado por McManus aponta mais de 80 sinônimos pejorativos
na língua.
Expressões populares atribuem juízo de valor aos dois hemisférios do
corpo: após uma sequência de reveses, diz-se que o desafortunado acordou
com o pé esquerdo; no Réveillon, desejamos ao próximo entrar no ano com
o pé direito, e assim por diante.
A etiqueta também não ajuda. Cumprimenta-se com a mão direita e, à mesa,
corta-se o alimento com a faca na mão direita, o que pode levar a um
"choque de asas" entre o canhoto e o destro ao lado.
Até a religião oferece chancela de peso ao preconceito. Segundo a
Bíblia, Jesus Cristo se sentava do lado direito de Deus. Quanto ao
Diabo, não apenas seria canhoto, como batizava os seguidores com a mão
esquerda, segundo idéia difundida no século 17.
Na política, a distinção é fortíssima. Na monarquia francesa, os nobres
se sentavam à direita do rei e o Terceiro Estado —burgueses e
outros, que acabaram derrubando o regime— ficavam à esquerda.
Comunistas, anarquistas e outros integrantes da esquerda política ainda
são associados à quebra da ordem vigente, cuja manutenção é defendida
pelos "conservadores", a direita.
A questão não se restringe à cultura e à política ocidental. No Alcorão,
no dia do Juízo Final, aqueles que carregam os livros na mão esquerda
sinalizam os que não foram bem-aventurados. O capítulo 56 do livro
sagrado muçulmano descreve o destino de cada grupo. Enquanto aos
bem-aventurados está reservado o melhor —tronos, água corrente,
árvores frondosas— os outros são recebidos com água fervente,
ventos escaldantes, uma sombra de fumaça negra.
"Os ditos do profeta determinam as ações de cada mão", explica o xeque
Armando Hussein Saleh, da Mesquita Brasil. "A mão direita é a das boas
ações, como se alimentar, cumprimentar as pessoas. A mão esquerda é
usada por Satanás e os demônios, em seus atos, por isso usamos a mão
direita para contrariar aquele que é nosso inimigo nº 1." À mão esquerda
estão reservadas as tarefas impuras, como a higienização, poupando a
direita para as ações puras. Essa noção ainda é observada em Estados
islâmicos mais conservadores, como os do Golfo Pérsico.
Até hoje não se sabe bem o que leva uma pessoa a ter mais habilidade com
uma das mãos. Acredita-se que haja influência genética, mas não se sabe
qual ou quais genes estariam ligados a essa característica. Também não
se sabe qual a porcentagem da população que terá esse traço.
Cerca de 10% das pessoas são canhotas, mas, devido à discriminação, essa
proporção era de 3% no início do século 20. "A influência ambiental é
decisiva em eventualmente converter um canhoto em falso destro ou em
definir um indivíduo sem determinação inata óbvia na expressão de uso de
membros", afirma Luiz Eugênio de Mello, professor de neurofisiologia da
Universidade Federal de São Paulo.
Ser classificado canhoto ou destro não é tão simples quanto parece.
Ninguém é 100% um ou outro. "Considera-se canhota a pessoa que tem o
domínio da habilidade motora manual, do pé ou do olho esquerdo", explica
o neurologista Luiz Celso Vilanova, chefe do setor de neurologia
infantil da Unifesp. "Mas a concordância não é obrigatória", acrescenta
Mello. Isto é, a mesma pessoa pode ter o pé direito e a mão esquerda
dominantes, por exemplo. Por uma convenção social, se valoriza mais a
predominância manual do que as outras duas.
Do ponto de vista neurológico, destros têm o domínio do hemisfério
cerebral esquerdo. Curiosamente, nem todos os canhotos são o oposto,
apresentando o domínio do hemisfério direito.
Essa questão da dominância está na raiz de um dos muitos mitos sobre os
canhotos: o de que seriam mais artísticos do que os destros, que, por
sua vez, teriam maior desenvoltura ao lidar com códigos lógicos,
situados do lado esquerdo do cérebro.
Uma área em que canhotos podem comemorar vantagem é a esportiva, pois os
jogadores estão mais acostumados a enfrentar adversários destros.
Estatisticamente, mostra McManus, esportistas canhotos bem-sucedidos
existem em proporção maior do que na população geral.
As mais variadas teorias tentam entender o canhotismo. Há não tanto
tempo, definia-se que o "normal" era ser manidestro e que o canhotismo
era resultado de um nascimento traumático. O resultado é que fazia-se de
tudo —e alguns ainda fazem— para tirar a criança do "mau
caminho". Quando o bebê começava a pegar objetos com a mão esquerda,
batia-se naquela mão e o objeto era colocado na mão direita.
Divulgação [] Capa do livro "Right Hand, Left Hand"
Professores também têm um histórico de repressão ao uso da mão esquerda.
A criança canhota era obrigada a aprender a escrever com a mão direita.
As canhotas autorizadas a usar a mão preferida eram corrigidas por
escrever "torto", com o caderno inclinado à direita.
Material escolar é um problema para canhotos: a espiral atrapalha o
punho, réguas têm a numeração da esquerda para direita (para canhotos o
mais fácil é traçar uma linha no sentido contrário) e as tesouras
impedem que vejam a linha sendo cortada.
Enquanto em países como o Reino Unido é possível encontrar produtos
feitos para canhotos, no Brasil esses objetos são praticamente
inexistentes.
Segundo Valmor Luiz Marchi, gerente industrial do grupo Eberle-Mundial,
que produz facas, tesouras e alicates para canhotos, vendidos no Brasil
e também exportados, o mercado consumidor não é proporcional ao número
de canhotos. "Mesmo o mercado americano desses produtos varia de 3% a 5%
da população, sendo que os canhotos representam mais ou menos 10% do
total", afirma.
Enfrentar essa série de pequenos desafios produz efeitos diversos nos
integrantes dessa minoria silenciosa. Em um dos poucos sites brasileiros
sobre o tema, o "livro de assinaturas" traz comentários de canhotos que
se vangloriam da condição ou se envergonham da "deficiência".
As causas e as consequências associadas ao uso preferencial de uma das
mãos têm sido objeto de vários estudos nos últimos 20 anos. Eles estão
inseridos na discussão a respeito de lateralidade: a idéia de uma linha
imaginária que divide tudo ao meio e um lado é diferente ou predomina
sobre o outro. Há até, no Reino Unido, uma revista sobre o tema:
"Lateralidade -Assimetrias do Corpo, do Cérebro e da Cognição". Um dos
editores é o próprio Chris McManus.
O subtítulo do livro de McManus dá uma idéia mais precisa sobre o ponto
onde o autor quer chegar: "As Origens da Assimetria: do Big Bang à Mente
Humana". Sua intenção é abraçar todas as áreas que promovem estudos
sobre o tema: psicologia, biologia, química e neurociência, em uma
tentativa de unificá-las, mesmo que de maneira informal —o livro é
muito mais informativo do que teórico.
Os capítulos do livro começam com perguntas: Por que existem canhotos e
destros? Por que os espelhos refletem imagens invertidas no sentido
esquerda-direita e não norte-sul? Por que nosso coração está do lado
esquerdo do corpo? Segundo o autor, a lateralidade está inserida em um
contexto maior, o de assimetria. McManus discute as questões históricas
e filosóficas a respeito da existência da assimetria, especificamente a
premissa de que esquerda e direita podem ser conceitos relativos ou
absolutos.
A idéia é que essa lateralidade está nas menores formas de vida (as
moléculas de DNA são "canhotas", isto é, sua espiral gira para o lado
esquerdo), passando pela lateralidade humana (a preferência pelo uso de
uma das mãos), até a escala macro, como a dispersão irregular das
galáxias no espaço.
Se traçarmos uma linha dividindo o corpo, vemos duas partes simétricas.
Mas a realidade é que o homem é surpreendentemente assimétrico: a
distribuição de órgãos é irregular, o sistema vascular é distribuído de
forma irregular pelo corpo, os dois hemisférios do cérebro têm tarefas
bastante distintas e usamos de forma bastante desigual as nossas mãos.
"Nosso corpo tem uma clara assimetria, ainda que por vezes pareça haver
um predomínio da simetria. Em geral, o lado esquerdo do nosso sistema
nervoso, que controla o lado direito do nosso corpo, é anatomicamente e
funcionalmente assimétrico em relação ao lado direito", afirma Mello.
Fonte: Folha de São Paulo - SINAPSE - 27/08/2002