UMA VIDA A DOIS


Cláudio Moreno


Um dia, Zeus resolveu verificar pessoalmente se os mortais estavam seguindo as leis da hospitalidade. Ele e Hermes, o mensageiro dos deuses, disfarçaram-se de simples caminhantes e lá se foram, a percorrer as terras da Frígia, batendo de porta em porta. Pediam comida e abrigo, mas só encontravam recusa, e Zeus decidiu castigar aquela gente mesquinha com um gigantesco dilúvio. Antes de ir embora, porém, chegaram à pobre choupana onde moravam Fílemon e sua querida Báucis, um casal de velhos camponeses; ali, para seu espanto, foram acolhidos com todo o calor da bondade humana. Os velhos acomodaram os visitantes nos únicos bancos da casa e foram tratar da comida, juntando tudo o que tinham. Fílemon avivou o fogo e pôs uma panela a ferver, onde Báucis deitou alguns legumes da horta e o último naco de toucinho. Em seguida, levou para a mesa um rude prato de barro com azeitonas e queijo, e Fílemon encheu um jarro com o pouco vinho que sobrava, diluindo-o com água para que rendesse um pouco mais - e faziam tudo isso com alegria, aproveitando cada passo para se entreolhar com todo o carinho, deixando Zeus encantado com a felicidade dos dois.

Quando o cozido fumegante foi trazido para a mesa e os caminhantes começaram a comer e a beber com apetite, os dois velhos perceberam que o jarrinho de vinho voltava a encher até a borda, por mais que dele tomassem; recuaram, então, respeitosos, porque isso só podia indicar que algum deus tinha entrado em sua casa. Zeus os tranqüilizou: ia mandar um dilúvio para punir todos os seus maus vizinhos, mas queria que eles se refugiassem no alto da montanha. Além disso, por serem pessoas assim tão especiais, dava-lhes o direito de pedir o que quisessem. Os dois confabularam, em sussurros, e pediram que sempre pudessem viver um com o outro, como tinham feito até aquele dia. Zeus concordou; inundou toda a região, e só os dois sobreviveram. E um dia, quando os dois conversavam, sentados ao solzinho de um fim de tarde, sentiram que estavam criando raízes, e viram um ao outro cobertos de verde folhagem: sua hora tinha chegado, e Zeus, fiel à promessa, transformou-os numa tília e num carvalho com os troncos entrelaçados - duas árvores diferentes, mas unidas para sempre, a coisa mais linda de ver. Contam que, por séculos a fio, vieram pessoas de longe admirar esse monumento que Zeus deixou para os homens, para lembrar que o segredo de uma vida a dois é crescerem ambos juntos, mas cada um em seu tronco - ela, tília; ele, carvalho. Esses, sempre felizes, nunca vão deixar de abrir quando a vida bater à porta.


[Porto Alegre, 21 de janeiro de 2004 - Jornal Zero Hora, Edição nº 14030 - claudio.moreno@zerohora.com.br]


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