UM VENENO INSUPORTÁVEL



Cláudio Moreno


Um dia, quando Hermes, o mensageiro dos deuses, voava sobre os arredores de Atenas, sua atenção foi atraída por um gracioso cortejo: eram Pandrosa, Herse e Aglaura, as três belas filhas do rei Cécrops, com guirlandas de flores na cabeça, que voltavam do templo da deusa protetora da cidade. Ao ver Herse, cuja beleza empalidecia a das irmãs, assim como o Sol faz com as estrelas, Hermes ficou tão perturbado que não atinou em descer; em vez disso, descreveu uma grande curva nos céus e voltou a tempo de vê-las entrando em casa. O deus, então, com o coração já enfeitiçado pela jovem princesa, desceu ao solo para procurá-la. As três irmãs dormiam em aposentos contíguos, e Aglaura foi quem viu o estranho que se aproximava. Hermes tratou com simpatia a possível cunhada; contou-lhe quem era e a que vinha, e rogou-lhe que o ajudasse a aproximar-se de Herse. Aglaura, que empalideceu só de ouvir falar na irmã, disse que talvez o fizesse por muito dinheiro, mas que agora ele devia ir embora.

Desapontado, Hermes contou tudo à deusa Atena, que resolveu punir Aglaura, com quem tinha velhas contas a ajustar; para tanto, foi procurar a Inveja e mandou-a invadir o coração da princesa. Enquanto Aglaura dormia, a Inveja entrou no palácio e soprou o hálito peçonhento em suas narinas, espalhando seu veneno pelo sangue e pelos ossos; para coroar sua obra, insuflou-lhe então na mente a tortura de ficar imaginando cada detalhe, dos mínimos aos grandiosos, do possível casamento de Herse. Desde esse dia, Aglaura começou a se roer por dentro; não era ciúme o que a fazia sofrer, porque Hermes não a atraía, mas a terrível idéia de que Herse seria feliz. Chegou a pensar em morrer, para não presenciar o triunfo da irmã. Quando Hermes voltou, ela estava tão desatinada que deitou diante da porta para impedir sua passagem. O deus tentou afastá-la, com palavras doces, mas ela declarou que iria ficar ali para sempre; Hermes, impaciente, respondeu que concordava - e tocou-a com seu bastão mágico. Imediatamente, Aglaura percebeu que estava perdendo os movimentos. Um frio mortal foi tomando todo o seu corpo; ela sentiu o peito virar pedra, e pedra virar o seu pescoço, até que suas feições também se enrijeceram e ela ficou ali, como uma estátua inútil, que nem ao menos era de pedra branca, mas de uma pedra escurecida pela chama negra da inveja.


Não seríamos humanos se não reconhecêssemos, neste mito contado por Ovídio, o que faz Aglaura sofrer: mais do que a compreensível vontade de ter o que Herse tem, ela sente o desejo obscuro de que Herse não tenha. Por isso ela vira uma estátua, vítima da mesma paralisia que acomete aquele que, ao saber de algum sucesso, sente-se mal e entristece - não por perder alguma coisa, mas porque a simples idéia de que outros possam ser felizes torna-se para ele um veneno insuportável.


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