MOEMA


Rosane Volpatto


A história de uma nação é escrita de muitas maneiras. Uma das mais fecundas é através do conhecimento das realizações e idéias que pairavam sobre este povo. Me atenho neste momento a estudar os ideais, as ambições, o estado de espírito e as contradições da época predominantes na vida de nossas ancestrais índias. Falar sobre esta energia radiante feminina é descobrir como o país nasceu, cresceu e se consolidou como nação.

Acompanhar a vida destas mulheres aqui evocadas é enxergar os momentos decisivos da nossa história pelos olhos de quem estava no redemoinho dos acontecimentos.


MOEMA

Desde o fértil rio Itapirucú, até o profundo Mucurí, dominava a próspera nação dos Paraguás, irmã dos Tupis e com os Tamarés comerciavam, vivendo em paz e serenidade.

Taparica, o invencível e grande chefe, dominara certa vez, no alto da serra dos Maracás, em luta singular, o terrível Jacaré Sagrado, que todos os meses danificava as plantações e devorava, por ordem de Anhangá, deus dos infernos, um menino de 11 anos. Tal vitória grangeou-lhe a estima e simpatia de toda a nação. Nesta tribo guerreira e cheia de heróis, nasceu Moema, filha de Taparica e irmã de Paraguassú.

A jovem índia cantava nas sacras solenidades, enaltecendo os deuses. Ela era muito linda e muito amada por Tambatajá, deus do amor e sob sua divina proteção cresceu a donzela em grande solidão na famosa oca paterna.

Certa noite, exatamente quando os inevitáveis sonhos dirigem-se aos mortais, sob as ordens de Vapuaçú, sonhou a bela jovem que uma grande igara (navio) de bravos guerreiros, veio para ela e um altaneiro crebam (homem branco) lhe estendeu seus valentes braços. Depois, quando ela se apaixonou pelo estrangeiro, a igara desapareceu no distante horizonte. Veio, por fim, a madrugada, desaparecendo os últimos vestígios do espírito dos sonhos, a jovem levantou-se.

Em seguida, chega um cortejo de alegres jovens, que vinham ajudá-la nas sacras danças, nos alegres cantos e nas suaves caminhadas. Chegavam, com a finalidade de convidá-la para um passeio ao grande porto dos deuses, que ficava próximo da tribo entre uma abundante floresta e o suave bramir do verde oceano.

Todas as indiazinhas estavam vestidas de brancos pelos e penas multicoloridas, trajando em suas frontes adornos preciosos. Moema vestia também um inigualável tecido de lontra, com lindos enfeites de ouro, cheios de diamantes. Tão linda veste fora trabalho de Caupé, a deusa da beleza e formosura, que dera como dádiva a sua mãe. Assim trajada, seguiram para o local já determinado.

O grupo de donzelas espalhou-se muito feliz, e cada uma procurava uma flor que desejava. Apiá colheu a formosa dália listrada; Taci, o suave girassol; Joamá preferiu a violeta pelo seu meigo perfume; Iné colheu o incomparável amor-perfeito; Icí apanhou a delicada margarida; Peró escolheu o elegante cravo; e assim corriam e brincavam sem preocupações. Porém Moema, sobressaindo-se entre as outras, trazia nas mãos um soberbo ramo de brancas rosas.

Cansadas da correria, deitaram-se na verde relva e se passaram a entoar lindos cânticos em honra a Tambarajá e as Parés (deusas da fé), deusas que percorrem as praias, as selvas, as campinas e as tabas, alentando a fé, a esperança e a caridade.

Tudo corria muito bem quando, em dado momento, surge no risco do horizonte uma igara muito grande, que vinha em direção às moças. Amedrontadas, foram chamar os valentes guerreiros da tribo. Todos se conduziram para junto do mar, porém, o Boto e os Angás, cheios de ira, chamaram Xandoré, deus do mal, e juntos lançaram uma forte tempestade sobre a grande igara. Quando esta afundava e estavam morrendo todos os crebans, Tolori, deus da tempestade, compadecido, salvou o mais jovem de todos, com o auxílio das Jurúas, deusas das nuvens, das tardes e das festas.

Assim, veio dar à praia o guerreiro branco. Moema e suas companheiras contemplavam surpresas o belo jovem, e tão logo ele recobrou a consciência, lançou mão de sua arma, e atirando com firmeza, matou um forte açor que passava naquele momento. De todos os lábios saiu uma só exclamação:

"Caramuru!"

Pensaram que ele era o próprio deus do fogo, metamorfoseado em homem.

E assim, conseguiu impor-se aquele jovem branco a toda a tribo dos Paragás. Então, o grande chefe Taparica tocou três vezes o forte maracá, e Moema voltou-se com as donzelas para servirem o sacro hóspede e os valentes guerreiros que vieram para protegê-las. O guerreiro branco torna-se filho de uma nação destemida!

Certa tarde, quando Caramurú passeava pela praia, Guraraci (deus Sol) resplandecia nas alturas sem nuvens e, olhando, viu creban ao longe e um pouco mais à frente, sentada na relva macia, estava Moema. Então Tambatajá tocou o coração do jovem, e ele se apaixonou pela donzela. Parê, a deusa da esperança, também envolveu os jovens, e Moema passa a amar o guerreiro branco loucamente.

Jurou terminantemente Piracurú, deus da maldade, que a bela índia não seria feliz e fez entrar no coração do jovem, uma profunda saudade de seu país.

Um dia surgiu, no grande porto, uma forte e soberba igara. Dois guerreiros brancos saltaram em terra e, depois de longa conversa com Caramurú, ficou resolvido que ele retornaria a sua pátria. Lamentos sem conta nasceram do peito, e a dor da separação e uma repentina tristeza tomaram conta de Moema.

Finalmente o dia da partida chegou. Polo fez soprar um vento leve e favorável, Juruá cobriu um pouco os quentes raios de Guaraci e a igara começou a mover-se. As límpidas vagas marulharam aso forte golpe dos remos e a embarcação de velas brancas zarpou para o alto mar. Mal podia Pirarucú contar o grande e cruel contentamento impiedoso por ver seu plano sinistro ter-se concretizado.

Entre amargas lágrimas, Moema percebeu que não mais poderia viver sem o guerreiro branco, e, atirando-se na água, tentou alcançar a igara que fugia para longínquo porto. Por muito tempo a linda jovem nadou e, quando suas forças lhe faltaram por completo, Abeguar, deus dos ventos, suplicou às poderosas Parajás que a salvassem, mas o destino da jovem índia era aquele, e as águas, sem piedade, tragaram o seu belo corpo.

Sumá, compadecida, pediu a Tupã e pelo consentimento do Senhor dos Imortais, e o mar, sob as ordens do Boto, devolveu o corpo da meiga jovem às praias de sua bela pátria.

Assim, extinguiu-se a formosa filha da próspera nação. E por muitos anos, as virgens, suas companheiras, em grande pranto, lamentavam a morte da encantadora moema.


HERANÇA INDÍGENA


Do índio herdamos a mansidão, a delicadeza do trato, o amor pelos animais e a acuidade para todas as coisas. Presenteou-nos também com a força diante do sofrimento, a ternura contemplativa da terra, o apego às crianças e a sensibilidade. Mas não só de ordem espiritual são os bens que os índios nos transmitiram. Para a língua que falamos, sua contribuição foi enorme. Ainda hoje o sabor das formas toponímicas do indígena continua a designar montanhas e vales, os rios e lagos, os brejos e restingas, exatamente como o índio fazia.

No campo da zoologia e da botânica, há igualmente o predomínio absoluto dos nomes indígenas. Muitas outras coisas os índios ensinaram ao homem branco que aqui chegou.

No século XVI, as naus não dispunham de espaço para transportar muitas utilidades. Viajavam sem conforto, conduzindo pouco mais que a roupa do corpo e, chegados à terra dos índios, iam viver com eles. Os potes de barro, igaçabas, cabaças, cestos e esteiras que constituíam a arte índia, eram os objetos de conforto com que contavam o povo europeu aqui chegado. As próprias crianças brancas tiveram a mesma distração do indiozinho, o tosco boneco de barro, que deu curso às suas primeiras reações. O homem branco, absorvido pelo meio, despiu-se pouco a pouco dos hábitos que se apegara na terra de origem. E desta forma, foi-se processando a adaptação, a fusão das duas raças, dando o cruzamento um tal ascendente ao índio sobre o português, que este se dispôs a reagir, sob vários pretextos, quando na verdade o fazia para não sucumbir.

Mas era, sobretudo, no domínio do espírito, que o índio melhor influía. Influía sobre a sensibilidade do branco, de todas as maneiras, na ação exercida pela índia no convívio do lar, nos pequenos e delicados serviços caseiros de que era artífice exímia e na força da persuasão e do amor com que servia. Hábil e envolvente, a mulher índia contribuía enormemente na formação social brasileira.

O índio tem sido, entretanto, um ser a quem se nega justiça. Destituído da posse de suas terras, acusado de inércia e falta de aptidão para o trabalho, vive marginalizado pela sociedade contemporânea.

O índio é dono de um passado que nos é inteiramente desconhecido, cioso deste passado, orgulhoso de sua raça e irônico diante da nossa pretendida superioridade espiritual. Não é o ser impermeável que se presume, antes disso, é inteligentíssimo, vivo e capaz de aprender todas as coisas.

Neste momento em que se procura imprimir uma orientação nacionalista, a questão do índio é precípua. Nós não chegaremos a ser um grande país, com espírito e formação nacional próprios, se não nos orientarmos, social e politicamente, fora dos moldes alheios, numa firme diretriz, com o sentido de amor à terra, de compreensão e da valorização do índio, seu legítimo dono.


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