O ANJO


Rosa Lobato de Faria


Eu tenho um anjo. Estava, quando eu nasci, ao lado do meu berço, roçou a asa pelo rosto de minha mãe e disse-lhe que esta criatura não te dê cuidado. Terá o seu quinhão de dor e sofrimento, o seu quinhão de alegria. Conhecerá a paixão e a raiva, a desilusão e a esperança. Gemerá de prazer nos braços de quem a não mereça, sorrirá de ternura de mãos dadas com quem a idolatre. Será cuidada e cuidará, será servida e servirá, será ajudada e ajudará. Há-de semear e há-de colher, há-de cozinhar e há-de comer, há-de dar vida e há-de viver. Aprenderá a trabalhar trabalhando, a amar amando, a perdoar perdoando.

Eu estarei sempre lá. Para que não caia na miséria, na podridão e no vício. Para que em todos os dias da sua vida tenha um pão, um tecto, um copo de água, um agasalho, um livro, um sonho. Terá o seu quinhão de amor, terá o seu quinhão de talento.

Minha mãe, apaziguada, reclinou-se no leito onde acabava de me dar à luz, num tempo em que não havia salas de parto nem médicos embuçados nem fecundações in vitro, mas tão somente uma parteira prestável e a vontade de Deus.

Aos seis anos o meu Anjo disse: canta, e eu não cantei. Aos doze disse: escreve, e eu não escrevi. Aos vinte disse: aprende, e eu não aprendi. Aos trinta disse: pensa, e eu não pensei. Aos quarenta caí, e ele lá estava, o rosto rente ao chão, as penas soltas a amaciar as pedras do caminho.

Então o Anjo levou-me pela mão às cantigas de amigo da minha infância. Passamos invisíveis entre as espigas de trigo e as ceifeiras cantavam, Amor não me digas nada, minha mãe já acordou, tua boca diz calada, mais que aquilo que falou. Minha mãe já acordou, não me dês a salvação: oiço bem no teu silêncio o que diz o coração.

O Anjo disse-me que aquela era a semente da minha felicidade, que na singeleza daquela poesia e daquele trigo estava a alegria da emoção nascente que haveria de conduzir-me ao sopé da minha montanha.

E o anjo disse-me. Não direi que o ouvi, mas o seu sussurro fez vibrar uma corda disponível da minha alma e quando em mim se faz silêncio, há um golpe de asa que me toca e escuto uma melodia mágica que me guia e me conforta.

E assim como nessa viagem pela mão do Anjo às raízes do sonho, cantei, também na passagem pelos anos de aprender, aprendi. Não só nos livros esquecidos, mas também nos olhos dos outros, nos gestos escusos ou abertos, nas mãos que se estendem a medo, contraídas, suadas, e nas mãos que se oferecem leais, secas e frescas, sem nenhuma reserva. Aprendi nos meus erros, nos meus julgamentos apressados, nas minhas omissões, mas também nos erros alheios, nas injustiças alheias, nas maldades alheias.

Quando, na minha peregrinação com o Anjo, parei na estação de pensar, pensei. Pensei no concreto e no invisível, no material e no imponderável, no por dentro e no por fora de mim. Pensei com a cabeça, pensei sobretudo com o coração.

Sou capaz de comover-me porque uma criança me estende uma flor, porque o sossego da tarde, perfumado a lúcia-lima tem um não sei quê de paraíso, porque o raio de sol que toca a minha chávena de chá a torna única e próxima da perfeição.

Sou capaz de saborear na memória aromas esquecidos, de biscoitos na lata, de pão saído do forno, de terra lavrada depois das chuvas, das laranjeiras quando estão em flor. Ruídos esquecidos, o ranger de uma porta que ao abrir punha uma mancha de sol na tijoleira, o canto de um canário numa cozinha de azulejos, a cançãozinha álacre das agulhas de tricô da minha mãe. E lembrei-me que de cada malha nascia outra malha, como de cada dia nasce outro dia, de cada pensamento um pensamento.

Tudo isto o meu Anjo me foi segredando, com paciência própria de quem tem por sua conta toda a eternidade. Ele acredita em mim, confia em mim, como decepcionar o meu Anjo?

Um dia, o meu Anjo e eu desembarcamos na estação de escrever. Foi-me contando na viagem a Parábola dos Talentos e como desagradavam ao Pai aqueles que os enterravam ou os dissipavam, como eu própria já várias vezes fizera. Fez-me recordar o tempo das ceifeiras e da pequena semente de alegria que havia de germinar por todos os meus caminhos. Pois bem, a estação de escrever estava repleta de floridos arbustos, de uma espécie desconhecida, e o Anjo disse que eles só floriam assim nas proximidades da minha montanha e ali eu tinha insondáveis razões para sentar-me e escrever o que me ditasse.

Fez-me analisar uma a uma cada tarefa cumprida, mostrou-me que apenas esta estava incompleta e urgia começá-la, porque no alto da montanha desabrochava uma flor da cor das suas asas, escrita com várias sílabas da palavra felicidade.

E como eu, tão apaixonada pelo meu Anjo que não podia negar-lhe nada, assenti, pôs-se a ditar-me poemas, murmurando apenas com um pequeno som de regato as palavras, às vezes desconhecidas, às vezes familiares, mas sempre colocadas, numa estranha luz, numa escondida ressonância de mistério.

Por este hábil processo, pôs-se mais tarde o meu Anjo a ditar-me romances, histórias inteiras que ele tece com as penas das suas asas e que eu transcrevo para lhe agradar.

E ao fazer-lhe esta simples vontade, nasceu no meu coração, minúscula como um grão de mostarda, uma inexplicável alegria, uma leveza como se eu própria tivesse asas, asas minhas e não apenas as que o meu Anjo me empresta para eu pressentir a inenarrável sensação de voar.

Dizem que os anjos não têm sexo. Mas o meu, tenho a certeza, é masculino. Sei-o pelos braços fortes com que me ampara e conforta, pelo dedo que me passa nas pálpebras para que eu veja a imagem escondida, pelo beijo que me dá na boca para que eu encontre a palavra que falta, pelo hálito doce que aflora constantemente o meu pescoço.

Um dia, iremos ao alto da montanha olhar a flor da perfeição. Dali voaremos juntos no caminho da luz e eu verei o seu perfil que imagino moreno, as suas mãos com que tirou tantas pedras debaixo dos meus pés, as asas com que me envolveu ou com que simplesmente fez vibrar o ar à minha volta.

Dirá ao Pai como, entre erros e acertos, inépcias e vitórias, fiz render o meu pequeno talento e cumpri o meu quinhão de risos e lágrimas.

De volta à Terra, o meu Anjo segredará na corda disponível de alguém que podem colocar, na pedra da minha campa, a última sílaba da palavra felicidade.


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