O PAPEL DA IDEOLOGIA NO PREENCHIMENTO DAS LACUNAS NO DIREITO.


RESUMO DO LIVRO:

O PAPEL DA IDEOLOGIA NO PREENCHIMENTO DAS LACUNAS DO DIREITO

de

LUIZ SÉRGIO FERNANDES SOUZA

Editora Revista dos Tribunais - São Paulo, 1993.



O CONHECIMENTO CIENTÍFICO E SUA VINCULAÇÃO COM A IDEOLOGIA

A esfera filosófica se ocupa de três grandes ramos, a saber: teoria do conhecimento ou teoria da ciência; teoria dos valores e teoria da concepção do universo. O discurso filosófico, enquanto teorização sobre a ciência, cumpre a função de uma metalíngua, ou seja, ele exprime um conhecimento sobre o conhecimento. Neste sentido, costuma-se distinguir saber, ciência e epistemologia, porquanto o saber, num sentido lato, não exclui o conhecimento vulgar, crente ou místico, enquanto a ciência, pelo menos na sua significação atual, é um conjunto de aquisições racionais.

A epistemologia visa ao estudo metódico e reflexivo dos vários ramos da ciência, desvelando seus fundamentos.

Embora as preocupações com o estudo das ciências sejam bastante recentes, é bem de admitir que já em Platão e Aristóteles encontramos numerosas reflexões epistemológicas, ainda que englobadas num contexto metafísico.

Aristóteles, filiado à posição realista, segundo o qual existiriam coisas reais, independentemente da consciência, conquanto sustentasse a imanência da propriedade das coisas, teve uma grande influência no chamado realismo crítico. Esta linha filosófica, dominante no segundo período do pensamento grego, considerava que a apreensão da realidade, por um único sentido, deve-se tão-só a nossa consciência. Daí o seu caráter subjetivo.

Poderíamos dizer que esta ótica realista é uma evidência, principalmente na Física do início da Idade Moderna. Galileu, nesta época, defendia a tese de que a matéria só apresentava propriedades espaciais temporais e quantitativas, enquanto todas as outras propriedades deveriam ser consideradas como subjetivas.

A Física moderna considera, pois, as qualidades secundárias como reações da consciência a determinados estímulos, os quais não são a própria coisa, mas sim certas ações causais das coisas sobre os órgãos do sentido.

Restou, assim, superada a visão ontológica, segundo a qual as propriedades percebidas pertencem tão-só às coisas, independentemente da consciência cognoscente.

Segundo a ótica idealista, não existem coisas reais, independentes da consciência. Sem descer às particularidades desta corrente filosófica, parece-nos suficiente dizer que, refutada a existência das coisas reais, só restam duas classes de objetos, quais sejam, os da consciência, tal como as representações, os sentimentos e os objetos ideais, vale dizer, os objetos da lógica.

A forma mais antiga do racionalismo encontra-se em Platão. Segundo ele, os sentidos jamais podem nos conduzir a um verdadeiro saber. Os sentidos nos encaminham, isto sim, a uma simples opinião. O que nos interessa, no processo de conhecimento, é o mundo supra-sensível, ou seja, o mundo das idéias. Assim, não só as coisas, mas também os conceitos procedem deste mundo.

Para os subjetivistas o sujeito é o fundamento do conhecimento humano. Assim, não há objetos independentes da consciência, pois todos são partes desta, produtos do pensamento.

Objetivistas e subjetivistas, realistas e idealistas, dogmáticos e céticos; certo é que a possibilidade do conhecimento humano restou, até aqui, mal resolvida.

Desde Piaget até a epistemologia crítica de nossos dias, a relação sujeito-objeto, que permeou todas as discussões filosóficas a partir de Aristóteles e Platão, têm orientado a moderna teoria da ciência.

A SISTEMATIZAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA ROMANA

As civilizações clássicas ocidentais, principalmente a romana, têm como característica fundamental a Jurisdicere, ou seja, a decisão dos pretores, combinada com o saber dos jurisconsultos. Vem daí o termo Jurisprudentia que designa a prática jurídica daquela época.

Ao pretor cabia a edição de fórmulas para a condução dos processos e esquemas de ação para determinado tipo de conduta. Sendo assim, colocado um problema, caberia ao pretor desenvolver os argumentos para resolvê-lo.

O primeiro passo no caminho da sistematização dos princípios e conceitos do Direito Romano foi dado pelos glosadores.

Com a queda do Império Romano e a invasão dos povos bárbaros, estes passaram a aplicar à Península Itálica os seus próprios costumes jurídicos.

Este chamado Direito Romano barbarizado vige, aproximadamente, até o século XI, quando se dá início a um trabalho de recuperação da cultura jurídica romana.

Com base no jusnaturalismo teocrático, fundaram-se os alicerces para a legitimação do Estado Moderno e, por via de conseqüência, do poder absoluto do monarca, representante da divindade.

Tais idéias têm origem em Hobbes que, em sua obra clássica, sustenta um contratualismo aos moldes absolutistas. Num segundo momento, fruto de uma revisão do jusnaturalismo de bases teocráticas, passou-se a edificação do Estado-laico, cujas leis deveriam obedecer à própria razão humana.

DOGMÁTICA E HERMENÊUTICA

Para Max Weber, toda ação humana visa a determinados objetivos ou valores. O ser humano, para comunicar-se, trabalha com códigos, visando a viabilizar a troca de mensagens. Estes códigos integram a nossa linguagem natural e se ressentem de uma série de vicissitudes, a exemplo da ambigüidade, da vagueza e da carga emotiva. Com efeito, convindo-se em que a linguagem é um sistema de símbolos, cuja relação com a realidade é determinada de maneira arbitrária, forçoso é concluir que é possível eleger qualquer símbolo para indicar qualquer objeto, ou qualquer classe de objetos, agrupados de acordo com propriedades que, convencionalmente, são tomadas como pressuposto para o uso de determinada palavra. As palavras no mais das vezes são vagas e imprecisas, porquanto há propriedades, existentes numa determinada classe de palavras, cujos diferentes graus não podem ser objetivamente mensurados. Ora, na medida em que o Direito, enquanto ciência, ocupa-se de um objeto que se coloca em termos lingüísticos, a descrição deste objeto, por si mesma, já implica o ato de interpretar. A cognição das normas, pois, caminha até o ponto de reconhecer a pluralidade de sentidos.

Entrementes, à medida que as normas costumeiras vão sendo codificadas, o cidadão comum ganha consciência da mutabilidade do direito. Surge a Escola Histórica, cujo expoente máximo é Friedrich Karl von Savigny.

A comunicação humana se estabelece por meio de códigos, os quais também são passíveis de interpretação, face aos problemas da vagueza, ambigüidade e da carga emotiva das palavras.

A saída para esta questão é o que se chama de metalinguagem, vale dizer, uma terceira língua que viabilize a comunicação.

Assim, entender um determinado enunciado significa dispor de uma tradução aceitável, que possa torná-lo mais claro.

A teoria realista é constituída a partir da noção de sinonímia. Quando se alude a expressões sinônimas somos levados a dizer que "significam a mesma coisa". O fato de duas expressões designarem um mesmo objeto é condição necessária, mas não suficiente para dizer-se que são sinônimas.

Sob o enfoque idealista, costuma-se dizer que as palavras sinônimas são aquelas que expressam o mesmo conceito, a mesma intenção, a mesma idéia.

Enquanto a linguagem natural, trabalhando com a realidade, tem um caráter descritivo, a linguagem normativa, operando com imposições, possui um caráter prescritivo.

O autor aduz também, que o estudo do Direito, assim como qualquer tipo de pesquisa científica, pode ser realizado pela aplicação de sistemas. Em outras palavras, um sistema, em termos absolutos, seria uma descrição completa da realidade.

A questão que se coloca, em termos genéricos, a propósito do tema das lacunas, é saber se existem vazios no direito, quer por ausência de disposição normativa, quer pela contradição entre as existentes.

François Geny e Ehrlich, contestando a chamada plenitude lógica do ordenamento jurídico, sustentaram que o direito positivo tem lacunas materiais que somente podem ser preenchidas pela livre investigação científica e pela livre interpretação do direito.

A organização dos sindicatos, dos grupos de pressão, dos pequenos partidos, demonstrou, àqueles que se ocupavam em estabelecer regras de conduta ou em interpretá-las, uma verdade inexorável: o direito é um fato social, que não pode ser enquadrado nas molduras rígidas do ordenamento jurídico traçadas pelo Estado. Nascia, assim, a Escola do Direito Livre, cujas relações com a sociologia jurídica são bastante estreitas.

Disto decorre que o sistema jurídico não pode ser visto como bastante em si mesmo.

A crença na plenitude do ordenamento não é, assim, uma questão lógica, mas somente um ideal.

A moderna burocracia, nos quadros da dominação racional, altera as formas pelas quais o homem se ocupa do seu objeto de estudo. O pensamento instrumental, voltado à consecução das finalidades traçadas pelo Estado intervencionista, torna cada vez mais tênue a linha divisória entre ciência e aplicação. São os corpos de especialistas, a serviço de uma determinada finalidade, que detém o monopólio da produção cultural legítima.

A reflexão científica do direito é, contudo, tardia. Isto explica a razão pela qual o jurista, na tentativa de emancipar o direito em relação aos saberes empíricos e especulativos, procura traçar um corte entre ciência e realidade, fundado em um pensamento idealista. Tal circunstância, paradoxalmente, dotou o pensamento jurídico de um alto grau de operacionalidade, ao permitir que os atores sociais, ignorando aquilo que as categorias e demais elaborações jurídicas têm de arbitrário, atuem com uma espécie de cumplicidade, no processo de domesticação ao qual eles próprios se submetem.

Na base dos modelos teóricos, das polêmicas e dissensões, é possível identificar diversas atitudes dos juristas acerca da função social do direito. Assim, se é certo que a constituição da ordem jurídica é a imposição autoritária, ainda que escamoteada com o emprego da mídia e das demais estratégias de convencimento, certo também é que o direito não se reduz ao sistema de normas postas pela autoridade. Os movimentos sociais, o chamado direito alternativo, também são captados pelas formas institucionais de composição dos conflitos, mediante um processo de abstração e generalização crescentes da norma posta, além do recurso a artifícios hermenêuticos, a exemplo da idéia de lacunas.

A percepção da incompletude do direito surge do contato com o sistema social. A polêmica em torno da completude e da incompletude como ficção revela, no fundo, uma disputa ideológica, na medida em que obscurece a atitude do jurista não só diante do direito, como, também, do seu próprio trabalho. A completude como ficção se, de um lado, torna explícito o exercício do poder simbólico, de outro, nem sempre consegue apreender a função social da dogmática jurídica.

A idéia de lacunas no direito permite aproximá-lo da realidade social, na medida em que possibilita ao aplicador da norma fugir da legalidade estrita, elidindo, por vezes, a vontade do legislador, quando ela é desautorizada pelos fatos. Trata-se de uma estratégia que visa a impedir que a autoridade seja desconfirmada, garantindo, de outro modo, a legitimação do direito, como instrumento de composição de conflitos, no domínio do poder racional. Para tanto, o sistema jurídico opera diferentes padrões de funcionamento, ora, apropriando-se do discurso legalista, ora neutralizando-o, conforme as finalidades sociais que tenha de legitimar.

Como esclarece Bourdieu, a interpretação "opera a historicidade da norma, adaptando as fontes a circunstâncias novas, descobrindo nelas possibilidades inéditas, deixando de lado o que está ultrapassado ou o que está caduco. Dada a extraordinária elasticidade dos textos, que vão, por vezes até à indeterminação ou ao equívoco, a operação hermenêutica de declaratio dispõe de uma imensa liberdade". Isto é possível porque o discurso jurídico, assim como o discurso ideológico, é pontuado de lacunas. O seu poder social reside, precisamente, nestes espaços em branco. "É porque não diz tudo e não pode dizer tudo que o discurso ideológico é coerente e poderoso... O discurso ideológico se sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende dizer".

É certo, de outro modo, que a institucionalização das manifestações sociais expontâneas tem o risco de pervertê-las, como, por exemplo, nas hipóteses em que o Judiciário se manifesta sobre a legalidade das greves. De fato, não é possível ignorar que o fenômeno de positivação do direito veio inserido no contexto de um pensamento instrumental, que, sob condições autoritárias, pode conduzir a mais completa e perversa dominação do Estado, posto que sutil, imperceptível e, por isso, aliciante. Nestas circunstâncias, o discurso jurídico, destinado a demonstrar que a decisão exprime não uma perspectiva pessoal do julgador, mas a volunta legis ou a voluntas legislatoris, confere ao direito grande eficácia simbólica, na medida em que o cidadão comum, convidado a participar da distribuição de uma justiça igualitária e ideologicamente neutra, acaba contribuindo para legitimar, ex post, decisões nas quais, na realidade, não teve qualquer participação.

A riqueza do modelo funcional de análise da ideologia reside precisamente nesta dupla perspectiva.

Contudo, se é bem verdade que o direito não pode ser reduzido a um instrumento da classe hegemônica, certo é, também, que a sua utilização como instrumento de luta e de mudança exige um certo grau de politização da parte dos endereçados normativos. Em contextos autoritários, somente os iniciados terão condições de explorar, à exaustão, a riqueza de possibilidades do direito. Por conseguinte, se o recurso à idéia de lacunas tem espaço lúdico e libertador, por outro lado, há uma faceta perversa que tem de ser considerada.

Os juristas, apercebendo-se desta plasticidade do direito, têm acentuado a importância de um controle axiológico. Instrumentos formais, a exemplo da proibição de analogia in malan partem, do costume e dos princípios contra legem, da aplicação da eqüidade sem autorização legal, buscam exercer uma certa vigilância sobre a aplicação da norma. Isto não impede, contudo, o exercício da violência simbólica, havida como instrumento de conhecimento e de expressão arbitrários.


  • Voltar