"AJUDE-ME A NÃO PRECISAR DA SUA AJUDA"
O que você olharia se tivesse apenas três dias de
visão?
Helen Keller, cega e surda desde bebê. Dá a sua resposta neste belo
ensaio.
Publicado no Reader Digest (Seleções) há 70 anos.
Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns
dias no principio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar
mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles
vêem.
Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. Nada de especial
foi à
resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver,
apenas pelo tato encontro centenas de objetos
que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero
de um pinheiro. Na primavera, toco os
galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno.
Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso
suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro
cantando.
Ás vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia
ser revelada pela visão! E imaginei o que
mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três
dias.
Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias fizeram
minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar
dentro do coração de um amigo pelas janelas da alma os olhos. Só consigo ver as linhas de um rosto por meio das pontas
dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza
e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus
rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais
de outra pessoa ao observar as sutilezas
de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar
a natureza íntima de um amigo? Será que a
maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por
satisfeita?
Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? Como experiência, perguntei a
alguns maridos qual a exata cor dos olhos de
suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não
sabiam.
Ah! Tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três
dias!
O primeiro dia seria muito ocupado. Eu reuniria todos os meus amigos queridos e olharia seus rostos por muito tempo,
imprimindo em minha mente as provas exteriores
da beleza que existe dentro deles. Também fixaria os olhos no rosto de um bebê, para poder ter a visão da beleza ansiosa
e inocente que precede a consciência individual
dos conflitos que a vida apresenta. Gostaria de ver os livros que já foram lidos para mim e que me revelaram os meandros
mais profundos da vida humana. E gostaria
de olhar nos olhos fiéis e confiantes de meus cães, o pequeno scottie terrier e o vigoroso
dinamarquês.
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória
de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite
não conseguiria dormir.
No dia seguinte eu me levantaria ao amanhecer para assistir ao empolgante
milagre da noite se transformando em dia. Contemplaria assombrado o magnífico panorama de luz com que o Sol desperta a Terra
adormecida.
Esse dia eu dedicaria a uma breve visão do mundo, passado e presente. Como gostaria de ver o desfile do progresso do
homem, visitaria os museus. Ali meus olhos,
veriam a história condensada da Terra -- os animais e as raças dos homens em seu ambiente natural; gigantescas carcaças
de dinossauros e mastodontes que vagavam
pelo planeta antes da chegada do homem, que, com sua baixa estatura e seu cérebro poderoso, dominaria o reino
animal.
Minha parada seguinte seria o Museu de Artes. Conheço bem, pelas minhas mãos, os deuses e as deusas esculpidos da antiga
terra do Nilo. Já senti pelo tato as cópias
dos frisos do Paternon e a beleza rítmica do ataque dos guerreiros atenienses. As feições nodosas e barbadas de Homero me
são caras, pois também ele conheceu a
cegueira.
Assim, nesse meu segundo dia, tentaria sondar a alma do homem por meio de sua arte. Veria então o que conheci pelo tato.
Mais maravilhoso ainda, todo o magnífico
mundo da pintura me seria apresentado. Mas eu poderia ter apenas uma impressão superficial. Dizem os pintores que, para
se apreciar a arte, real e profundamente,
é preciso educar o olhar. É preciso, pela experiência, avaliar o mérito das linhas, da composição, da forma e da cor. Se
eu tivesse a visão, ficaria muito feliz
por me entregar a um estudo tão fascinante.
À noite de meu segundo dia seria passada no teatro ou no cinema. Como gostaria de ver a figura fascinante de Hamlet
ou o tempestuoso Falstaff no colorido cenário
elisabetano! Não posso desfrutar da beleza do movimento rítmico senão numa esfera restrita ao toque de minhas mãos. Só posso
imaginar vagamente a graça de uma bailarina,
como Pavlova, embora conheça algo do prazer do ritmo, pois muitas vezes sinto o compasso da música vibrando através do piso.
Imagino que o movimento cadenciado seja
um dos espetáculos mais agradáveis do mundo.
Entendi algo sobre isso, deslizando os dedos pelas linhas de um mármore esculpido; se essa graça estática pode ser tão
encantadora, deve ser mesmo muito mais forte
a emoção de ver a graça em movimento.
Na manhã seguinte, ávida por conhecer novos deleites, novas revelações de beleza, mais uma vez receberia a aurora. Hoje,
o terceiro dia, passarei no mundo do trabalho,
nos ambientes dos homens que tratam do negócio da vida. A cidade é o meu
destino.
Primeiro, paro numa esquina movimentada, apenas olhando para as pessoas,
tentando, por sua aparência, entender algo sobre seu dia-a-dia. Vejo sorrisos e fico feliz. Vejo uma séria determinação
e me orgulho. Vejo o sofrimento e me
compadeço.
Caminhando pela 5ª Avenida, em Nova York, deixo meu olhar vagar, sem se fixar em nenhum objeto em especial, vendo apenas
um caleidoscópio fervilhando de
cores.
Tenho certeza de que o colorido dos vestidos das mulheres movendo-se na multidão deve ser uma cena espetacular, da qual
eu nunca me cansaria. Mas talvez, se pudesse
enxergar, eu seria como a maioria das mulheres interessadas demais na moda para dar atenção ao esplendor das cores em meio
à
massa.
Da 5ª Avenida dou um giro pela cidade vou aos bairros pobres, às fábricas, aos parques onde as crianças brincam. Viajo
pelo mundo visitando os bairros
estrangeiros.
E meus olhos estão sempre bem abertos tanto para as cenas de felicidade quanto para as de tristeza, de modo que eu possa
descobrir como as pessoas vivem e trabalham,
e compreendê-las melhor.
Meu terceiro dia de visão está chegando ao fim. Talvez haja muitas atividades a que devesse dedicar as poucas horas
restantes, mas aço que na noite desse último
dia vou voltar depressa a um teatro e ver uma peça cômica, para poder apreciar as implicações da comédia no espírito
humano.
À meia-noite, uma escuridão permanente outra vez se cerraria sobre mim. Claro, nesses três curtos dias eu não teria
visto tudo que queria ver. Só quando as trevas
descessem de novo é que me daria conta do quanto eu deixei de
apreciar.
Talvez este resumo não se adapte ao programa que você faria se soubesse que estava prestes a perder a visão. Nas sei
que, se encarasse esse destino, usaria seus
olhos como nunca usara antes. Tudo quanto visse lhe pareceria novo. Seus olhos tocariam e abraçariam cada objeto que surgisse
em seu campo visual. Então, finalmente,
você veria de verdade, e um novo mundo de beleza se abriria para
você.
Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem: usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão. E o
mesmo se aplica aos outros sentidos. Ouça a
música das vozes, o canto dos pássaros, os possantes acordes de uma orquestra, como se amanhã fossem ficar surdos. Toquem
cada objeto como se amanhã perdessem o
tato. Sintam o perfume das flores, saboreiem cada bocado, como se amanhã não mais sentissem aromas nem gostos. Usem ao máximo
todos os sentidos; goze de todas as
facetas do prazer e da beleza que o mundo lhes revela pelos vários meios de contato fornecidos pela natureza. Mas, de todos
os sentidos, estou certa de que a visão
deve ser o mais delicioso.
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"Não generalize aspectos positivos ou negativos de uma pessoa cega que você conheça, estendendo-os a
outros cegos. Não
se esqueça de que a natureza dotou a todos
os seres de diferenças individuais mais ou menos acentuadas e de os preconceitos se originam na generalização de qualidades,
positivas ou negativas, consideradas
particularmente.