Darc Melgaço Bulcão


Meus Pais

Eu e meu irmão mais velho nascemos com problemas de visão
devido aos meus pais serem primos irmãos e cada um deles ter um pouco
de sífilis. O meu irmão mais velho nasceu com catarata, submeteu-se a
cirurgia e leva a vida normalmente, sem grandes dificuldades.

Eles moravam num lugar muito atrasado e não havia médico
por ali a não ser nas cidades vizinhas. O transporte era feito por
canoas e a cavalos, e somente quando eles perceberam que eu não tinha
visão nehuma é que providenciaram ir ao médico procurar um tratamento
preventivo para que os demais filhos que viessem a ter não fossem
prejudicados pela sífilis. Com apenas um simples remédio eles puderam
ter filhos sem qualquer problema de visão.

Meus pais se amavam muito e dessa união nasceram sete filhos
dos quais morreram dois meninos, um com seis meses e outro com sete
anos muito ligado a mim.


Minha Infancia

Nascida em Camurugi, município de Taperoá, estado da Bahia,
vivi uma infância tranquila. Morava num lugar que era muito atrasado,
sendo considerado mesmo uma roça. Lá não havia energia elétrica nem
água encanada e esgoto. Era uma casa grande com muitas frutas, árvores
diversas e uma maré em que eu e meus irmãos gostavamos de pescar e de
tomar banho. Acordavamos bem cedinho, por exemplo, as cinco da manhã e
todos os costumes eram totalmente diferentes dos costumes das grandes
cidades. O importante de tudo isso é que brincávamos bastante e éramos
felizes.

Por volta dos sete anos de idade nos mudamos para a cidade em
que moramos atualmente. Aí começamos a tomar conhecimento do ambiente
urbano, com saneamento básico, eventos sociais, etc. Nessa mudanca o
que mais nos impressionou foi uma visita a cadeia que fizemos. Imaginem
voces! Foi como numa festa que entramos naquele lugar para visitarmos
os presos. Para nós tudo era festa. Sempre que fazíamos algo de errado
os meus pais nos ameaçavam de que os soldados iriam nos prender e é
claro que sentiamos muito medo. Mas não parava aí: Na hora de
comprarmos alguma guloseima, optavamos sempre pelo picolé que antes era
desconhecido por não termos geladeira devido a falta de energia
elétrica.

Mas como tudo na vida é efemero e passa... vieram os onze anos
de idade e tive de fazer uma grande opção... trocar a praça e as
brincadeiras com os meus irmãos pela escola.


Ida Para A Escola

Quando estava para completar doze anos tive que fazer talvez
a grande opção da minha vida... Ir para a escola!... Como sonhava
estudar para ser alguém na vida e trabalhar, formar a minha família...
Certamente casar!... Ter muitos filhos é claro assim como meus pais e
sermos felizes para sempre como nas novelas de rádio que ouvia com
atenção. Era um sonho que estava na minha cabecinha. Mas antes eu teria
que enfrentar a separação daqueles a quem amava e amo.

Muitas vezes pedia aos meus irmãos para lerem a cartilha deles
para mim e decorava página por página. Colava papeizinhos com chicletes
e um vizinho amigo nosso, talvez com pena de eu não poder estudar, me
presenteava sempre com um livro novo. Ficava radiante. Não imaginava
que fosse ser tão duro deixar meus pais, meus irmãos e amigos.

Finalmente, depois de adiar por muitos anos a minha ida para o colégio
interno em Salvador, numa manhã do mes de marco de 69, na hora da
partida o meu tio Davi me vendo tão angustiada pediu que eu decidisse
se eu queria mesmo ir estudar ou se eu queria ficar morando com todos
eles para sempre naquela cidade tão querida e amada!... Com toda
saudade, com todo apego, senti que não podia fraquejar... Foi então que
disse sim! Senti muito a separação e afirmo que ate hoje ainda sinto.

Se me perguntassem o que mais senti pelo fato de ter nascido cega,
diria que certamente foi a separação da minha família. A separação que
me foi imposta exclusivamente pela cegueira, pois que meus pais e meus
irmãos sempre foram muito amorosos e dedicados e por este motivo senti
muito não poder participar do dia-a-dia junto com eles.

E porque vivenciei tudo isso que enquanto professora do
Instituto Benjamin Constant entendo e como entendo quando uma
criancinha vem pra mim nos primeiros dias de aula com problemas de
adaptação... É como se estivesse vendo o filme de vinte oito anos
atrás!... Entao tento fazer com que ela ultrapasse toda essa
dificuldade.

Retomando a escola, gostei muito de conhecer pessoas
diferentes, mas senti uma grande solidão apesar de ter uma tia muito
boa que sempre me levava para casa dela nos fins de semana. No
Instituto da Bahia encontrei uma conhecida dos meus pais que me alfabetizou e
que por coincidência morava em Camurugi.

No primeiro ano primário fui para uma escola com crianças que
não tinham problemas de visão. Lá havia uma itinerante que ia todos os
dias e que transcrevia os textos dos livros dos outros alunos para que
a mesma professora pudesse ensinar a mim e a meus dois colegas. À tarde
tinhamos aulas de estudo dirigido para sanar as dificuldades que por
ventura pudessemos ter. Nesse aspecto foi muito boa a minha
experiência.

Ao longo de quatro anos, quando estava escrevendo para o
Jornal Humanaca, dos meus tios, conheci Luzia, atualmente colega de
trabalho que prometeu falar com o diretor que por coincidência se chama
Antonio para que eu viesse estudar no IBC. No comeco do ano de 73
continuei no instituto da Bahia, até que, em final de marco, numa
segunda-feira, meu pai chegou dizendo que dai a dois dias iríamos
viajar para o Rio. A carta da Luzia com a resposta afirmativa tinha
chegado em Taperoá no sábado e na segunda ele estava lá para tomar as
providências necessárias à minha vinda. Foi um complexo de sentimentos
que quase não consigo descrever: por um lado eu iria para o Rio
continuar os meus estudos que tanto queria e precisava para vencer na
vida... Por outro, iria bem pra longe da minha família que tanto
amava... Um misto de alegria e de tristeza invadiu todo o meu ser...

Contudo, como era de se esperar, fui em frente. À noite, na hora da
janta, comi uma muqueca de siri que minha mãe tinha mandado e aí me
bateu aquela saudade. Pensava comigo mesma: não vou poder ver a minha
mãe em São João, não poderei passar as férias do meio do ano com
eles... Brincar na fogueira, fazer novos compadres e novas comadres...

Mas não podia desistir! Iria prosseguir. À noite, na hora de dormir,
quando, como de costume, rezávamos juntos, a diretora falou para os
meus colegas que eu ia deixá-los e iria embora no outro dia. Muitos
sentiram e eu tambem. Ficamos muito emocionados e ao sair da capela nos
abraçamos para no outro dia cedinho nos despedirmos.

Na hora em que estava saindo, parei para dizer a mim mesma:
não podia ficar ali, tinha que ir, afinal, no proximo ano teria que
deixar o educandário, pois que terminaria a antiga quinta série
primária e se quisesse estudar teria que ficar em casa de parentes e
com isso a minha família não iria concordar. Eu teria mesmo que voltar
para Taperoá.

No dia seguinte, eu e meu pai viajamos rumo ao Rio!...


Ingresso No IBC

No dia 31 de marco por volta das 13:50 chegamos ao IBC. Não
conhecíamos nada ali. Estavamos totalmente inseguros, deslocados e
angustiados pela separação que teríamos que enfrentar dentro em pouco.

Meu pai, por não conhecer a cidade, chegando no aeroporto,
fretou um táxi e acertou com o motorista para que o mesmo o levasse de
volta, a fim de que retornasse no mesmo dia. Depois que foram feitas
as entrevistas pela assistente social, por volta das 15:30, ele estava
liberado. Chegava o momento da despedida! Por duas vezes ele foi embora
me deixando sentada num banco do serviço médico para ser encaminhada
para a enfermaria a fim de serem realizados novos exames de rotina. Nem
preciso descorrer a respeito do que senti. Longe do meu estado, da
cidade em que nasci... Da minha familia... Mas me adaptei muito rápido.

Gostei muito dali. Fiz novos amigos e meu namorado ajudou-me a vencer a
demora do tempo. No meio do ano, passava as férias dentro do IBC, pois
não podia viajar sozinha de ônibus e de avião era muito dispendioso.

Finalmente, no ano de 77 terminei o primeiro grau. Estava
preparada para sair da proteção dos muros do Instituto e tinha que
estudar em escola comum. Para minha felicidade, Deus que nunca me
abandonou, fazia-me ver que estava do meu lado... eu conseguira a bolsa
no referido educandário para então poder estudar em uma escola.

Fiz o meu primeiro ano normal no Azevedo Amaral. Qual não foi
a minha decepção... Além de me sentir desprotegida, para o meu
aprendizado, peguei uma orientadora que exigia de mim o que não poderia
dar. Eu tinha que me sacrificar se quisesse vencer, pois fazia provas
orais e sob pressão. Era sempre ela que fazia questão de estar só, numa
sala fechada, onde não tivesse ninguém para impedir suas maldades.

Havia muitos gráficos em certas provas, e tinha que acertar todas as
questões teóricas se não quisesse ficar em recuperação e por último
reprovada. Ficar reprovada jamais! Se assim fosse perderia a bolsa e
teria que ir embora para Taperoá. Foi assim que nunca estudei tanto
quanto naquele ano.

A partir do segundo ano, consegui bolsa no Maria José Imperial
e para minha sorte, dali em diante correu tudo muito bem.

Fiz vestibular passando para a Gama Filho. Cursei um semestre
e, tendo conseguido bolsa na Notre Dame em Ipanema, terminei a
Faculdade de Pedagogia em Magistério e Orientação Educacional.


A Caminho Do Matrimônio

No ano de 1981 tivemos no IBC a oportunidade de fazer o curso
de processamento de dados. Nessa época estudava na Gama Filho e muitas
vezes não dava tempo para almoçar, chegando atrasada para o referido
curso. Mas era uma turma grande e os colegas eram, em sua maioria,
ex-colegas de sala do ginásio, o que me animava muito.

Contudo, lá pelo meio do curso, descobri que ser programadora
não tinha nada a ver comigo. Achava essa profissão muito fria. Gostava
mesmo era de lidar com crianças.

Mas como gostasse muito dos colegas e como a irmã do professor
fôsse muito minha amiga sempre estava lá para visitá-los.

O tempo, que é amigo de todos, foi fazendo com que nos
entrosássemos cada vez mais e nos tornássemos muito amigos.

Nesse ínterim, tive um problema com uma professora de
estatistica, que, por não conhecer a capacidade de qualquer deficiente
e ignorar que os indivíduos se diferenciam por suas caracteristicas
próprias e não pelo fato de serem deficientes, declarou que com ela
cego não passaria. Outras colegas minhas já tinham sido reprovadas
anteriormente.

Arrumei uma ledora, que, sob as orientações do professor
amigo, fazia os gráficos com barbante e um dia tomamos coragem indo as
duas enfrentar a fera. Levamos os gráficos. De início, fomos tratadas
com frieza e indiferença. Tive que me esforçar para ultrapassar a
barreira. Colocamos os gráficos em cima de sua mesa e comecei a
discorrer a respeito da materia dada, o que a impressionou
muito, fazendo com que mudasse de opinião imediatamente. Daí, passamos
a ter um bom relacionamento e outros cegos puderam entrar em sua sala
e ter toda a atenção da qual necessitavam.

Amigos inseparáveis, simpatico, culto, educado e poeta, não
pude resistir aos seus poemas. Caí em suas garras e começamos a
namorar. Não preciso dizer o quanto foi importante te-lo encontrado...

No dia doze de outubro de 1983, dez anos apos o meu ingresso
naquele educandário, saí para o apartamento em que iríamos morar. Meus
pais acabavam de chegar ao Rio juntamente com a minha tia madrinha e
uma prima, para participarem do nosso casamento na igreja brasileira,
na Penha, que se realizaria no proximo dia quinze do referido mês.

Eu estava feliz. Iria ter a minha casa!... Mas não iria deixar
a faculdade. Continuei normalmente. com meu enteado pequeno, corria muito para
as aulas e para fazer estagio no IBC na area de Orientação Educacional.

No ano de 84 prestei provas para o concurso de magistério no
Instituto Benjamin Constant, tendo sido aprovada.

No final do mesmo ano, meu irmão chegava ao Rio para comprar
um apartamento para que pudéssemos morar em paz. Acabava assim o
desconforto de ter que sair do apartamento quando o proprietário
pedisse.

Nos mudamos em fevereiro de 85 e em março tomei posse no IBC.

Em agosto do mesmo ano, concluía a faculdade. No dia dois de
setembro nascia o nosso primeiro filho, Marcus Vinicius, para completar
a nossa felicidade!!!

Trabalhando, formada, com casa nova e o meu filho nos
bracos... Era tudo que sonhava!

Estavamos felizes! Quantas bênçãos caíam por sobre nós!...


Mas A Vida Continua

No ano de 1988 nasceu o nosso segundo filho que infelizmente
não pôde ficar muito tempo conosco. Ao nascer teve problemas de
respiração. Quando estava para ficar de alta sofreu parada respiratoria
juntamente com infecção hospitalar e meningite. Foi a segunda grande
perda, ja que a primeira fôra meu irmao durante a infância.

No ano de 1990 outra pessoa parte de repente: a amiga
dedicada, a incentivadora, a companheira ainda que distante
fisicamente, minha mãe vai embora dessa vez para uma estrela onde só
alcance o coração... o amor... o pensamento!...

Em 91 fiz o meu curso de pos-graduação na área de
alfabetização, cujas cópias da monografia se encontram na biblioteca
do IBC e da Uni-Rio.


Depoimento

Para mim, o que pode fazer uma pessoa deficiente vencer é
principalmente o amor, a compreensão, a dedicação e o apoio que a
família pode dar ao mesmo. Quando me refiro a deficiência não pretendo
especificar essa ou aquela. Pensando bem, não são só os deficientes mas
aqueles que se deparem com situações difíceis como, por exemplo,
drogas, álcool ou qualquer componente químico que crie dependência.

Sintetizando: a família e/ou aqueles que convivem com a pessoa que
apresente dificuldades por falta de um dos sentidos e essencial para
que ela ultrapasse suas barreiras internas e vença as barreiras
impostas pela sociedade em que vive.


Entre em contato comigo:

tacarlos@quindim.nc-rj.rnp.br