"A gente se acostuma" |
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado por que está n# a
hora.
A tomar café correndo por que está atrasado. A comer sanduíche po# r que
não dá tempo de almoçar. A sair do trabalho por que já é de n# oite. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido a vida.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitandn
o
a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E,
aceitando os números, não acredita nas negociações de paz. E, n# ão
aceitando as negociações de paz, aceita todo dia o dia a dia da gueà
rra,
dos números de longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone : hoje
não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignoradn
o
quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que se necessita.
E a lutar para ganhar mais dinheiro com o que se pagar. E a ganhar menon s do que se precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro , para ter com que pagar nas filas en m que se cobra (...) A gente se acostuma à poluição , as salas fech# adas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias 0 da água potável. À contaminação das águas do mar. À lenta mo# rte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo na madrugada, a
temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não teà r
sequer
uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequen#
as
tentando não perceber, vai afastando uma dor daqui, um ressentimento
ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada , a gente molha só os pés e sua no reà sto
do
corpo, conformado. Se o trabalho está duro, a gente se consola com o
final de semana. E, se no fim de semana não há muito o que fazer, 0 a
gente vai dormir cedo e fica satisfeito, por que, afinal, está sempre
com o sono atrasado.
Se acostuma a não ter que ralar na aspereza, para preservar a pele.
Acostuma a evitar feridas, sangramentos , para esquivar-se da faca e
baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que,
gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colassanti
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